Leonardo Coelho, especial para o Congresso em Foco
A estudante gaúcha Pietra Simon, de 22 anos, desenvolveu surdez profunda durante a infância. Desde a adolescência, ela passa parte do seu tempo livre visitando diferentes repartições públicas da sua cidade, Bagé (RS). O motivo? Ajudar quem tem dificuldade de compreender e ser compreendido. “Muitos surdos têm dificuldades para escrever”, conta a universitária. Para muitos dos 10 milhões de brasileiros com perda auditiva, a primeira língua não é o português, mas a língua brasileira de sinais (libras). “Praticamente não há intérpretes nem funcionários que saibam essa língua. Isso deixa os surdos desconfortáveis, então como eu sei escrever eu tentava ajudar”.
Mulher trans, Pietra percebeu no dia a dia a falta crônica de intérpretes. Sem opções, alinhou sua atuação de intérprete voluntária pensando como poderia alterar essa situação e outras tão comuns aos surdos em seu município. Familiares já haviam pedido que ela se candidatasse para vereadora, mas a estudante não achava pertinente. “Não achava que levava jeito e tinha muito medo de ser atacada por ser uma mulher trans e surda. Preferia ter uma vida normal de estudo”. A opinião da jovem, porém, mudou. Filiada ao Psol há pouco mais de um ano, Pietra é candidata a vice-prefeita de Bagé.
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Ela não está sozinha. Presente em uma lista criada e compartilhada pela comunidade surda via Whatsapp, Pietra aparece como uma das 66 opções de candidatos e candidatas com diferentes graus de surdez que disputam cargos de vereador e vice-prefeito este ano, identificadas por lideranças da comunidade (veja no gráfico dinâmico abaixo quem são eles). Distribuídos entre 61 cidades de todas as regiões do país, o número já configura um recorde histórico.
Entre 2008 e 2016 o Brasil teve apenas 11 candidaturas, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) enviados à reportagem. Ou seja, o número de candidaturas de pessoas com deficiência auditiva cresceu pelo menos 13 vezes nesse período (clique no mapa abaixo para identificar candidatos surdos).
Nesta eleição, pela primeira vez, o candidato pôde informar se tinha algum tipo de deficiência. A autodeclaração não era obrigatória. O dado, porém, não consta das estatísticas da página do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O Congresso em Foco pediu ao TSE o total de candidatos registrados que declararam deficiência auditiva. Mas o tribunal alegou que a comissão da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) concluiu que não cabe à corte divulgar esse tipo de informação sem a autorização do candidato. Por isso, afirmou, os dados eram de consumo interno e só estavam sendo compartilhados com tribunais regionais eleitorais. O TSE admitiu que ainda poderá divulgar dados consolidados de forma anônima para dar transparência ao processo.
Para o ex-ministro do TSE Joelson Dias, da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), a maior participação política de pessoas com deficiência é uma das consequências positivas da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), em vigor desde 2015.
“Apesar de não termos dados científicos empíricos, a LBI alterou o Código Civil Brasileiro e acabou com a incapacidade civil de pessoas com deficiência”, explica o advogado. “A lei também define que a curatela, a interdição, é medida excepcional podendo restringir tão somente os atos negociais e patrimoniais das pessoas com deficiência, mas não afeta nem o direito delas ao voto e, também, o direito a que essas pessoas possam ser votadas”.
Como se pode observar no mapa interativo acima feito pelo Congresso em Foco, as 66 candidaturas surdas compartilhadas por membros da própria comunidade se espalham Brasil adentro, abrangendo todas as partes do país. Há uma prevalência de candidaturas fora dos grandes centros urbanos. Apenas 12 capitais aparecem na lista de municípios com candidatos surdos, o que representa 21,3% desse universo. Dos 66 candidatos citados acima, 15 são mulheres (22%). É pouco, mas, até este ano, apenas uma mulher com problema auditivo havia disputado a eleição.
Uma das candidatas deste ano é Morgana Siqueira, servidora pública, surda bilíngue e atualmente também candidata à vereadora em São Paulo pelo PSDB. Para ela, as cotas de gênero e o fim das coligações nas eleições proporcionais ajudam a explicar o aumento da oferta e da demanda por representatividade política das mulheres.
A Emenda Constitucional (EC) nº 97/2017 proibiu, a partir desta eleição, a celebração de coligações nas eleições proporcionais para as Casas Legislativas, o que permite que mais candidaturas sejam promovidas pelos próprios partidos.
“Buscamos a visibilidade e o protagonismo das mulheres surdas na sociedade, uma vez que elas sempre foram deixadas de lado”, pontua Morgana, que diz focar suas propostas em questões de acessibilidade e integração da comunidade surda ao resto da sociedade. Para a candidata, muitos não entendem as diferentes identidades surdas e suas dificuldades.
“A língua portuguesa é do mundo dos ouvintes e pode dar um nó na nossa cabeça. Precisamos mostrar que a surdez possui uma vasta diversidade de perfis que precisam ser entendidos para pôr em prática a acessibilidade de comunicação para todos”.
Distribuído entre candidatos que vão de 21 e 70 anos e que abrangem de Bagé a Macapá, o retrato das candidaturas surdas é diversificado. As propostas sugerem desde a criação de delegacias especializadas em pessoas com deficiência até a implementação de escolas bilíngues português/Libras e a melhora destes locais e de suas tecnologias assistivas. Há espaço até mesmo para candidaturas especiais como a de Damaris Martins, pela Rede Sustentabilidade em Curitiba, que faz parte de uma candidatura coletiva.
A candidata faz parte de uma demografia específica dentro da comunidade surda que é pouco conhecida até mesmo por seus pares: a dos surdos unilaterais, caracterizadas pela perda de audição em um só ouvido. Por conta disso, segundo ela, muitos surdos não a reconhecem como uma igual, o que a deixa em uma situação ímpar.
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“Muitas vezes somos vistos como ‘retardados’ pelos ouvintes e outros termos pejorativos porque não escutamos. Entretanto, após o surdo bilateral aprender a se comunicar [em Libras] com os outros, metade dos seus problemas se resolvem. E o fato de eu ser ‘meia’ surda me coloca entre as duas realidades”, compartilha a candidata. Criada por uma mãe com surdez nos dois ouvidos, Damaris viu ao vivo boa parte dos preconceitos que agora quer tentar sanar. “Eu posso não ter passado pelo aprendizado de Libras para me comunicar, mas eu passei pela experiência de ser taxada de burra. Por isso parte da comunidade tem por vezes dificuldade em me aceitar”.
Atualmente há um projeto de lei (PL 1361/2015) em tramitação na Câmara para que a surdez unilateral seja considerada uma deficiência. O projeto está pronto para entrar na pauta da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), não instalada este ano devido à suspensão das atividades dos colegiados em razão da pandemia de covid-19.
A pluralidade no espectro da surdez já é pouco representada na própria comunidade, e mais ainda no resto do Brasil. “Temos os surdos sinalizados, cuja língua materna é Libras e temos os surdos oralizados, que se comunicam oralmente e fazem leitura labial e cuja língua é o Português” ensina Joaquim Barbosa, vice-presidente da Organização Nacional da Diversidade Surda (Onas). Ele próprio é um surdo bilíngue, que transita entre as duas línguas.
“Também tem os surdos que usam protetizações, tais como aparelhos auditivos, IC (implantes cocleares), próteses auditivas osteontegradas ou AASI (Aparelho de Amplificação Sonora Individual). Tem os ensurdecidos, que desenvolvem a surdez com o tempo, os surdocegos, surdos com deficiências múltiplas etc. Todos são parte do mesmo espectro”.
Mesmo assim, Joaquim admite que é comum que a comunidade surda separe outras pessoas com problemas semelhantes, chamando-as de deficientes auditivos, que não fazem parte da cultura nem da comunidade surda, mesmo que estes tenham maior perda auditiva. “Vale ressaltar que, após a LBI, a nomenclatura ‘deficiente’ deu lugar a ‘pessoa com deficiência’, pela qual se entende que a pessoa não é deficiente, e sim que ela tem uma deficiência, nesse caso a auditiva. Então, se observar melhor a terminologia pela lei, ela se torna incorreta. Ela segrega e separa as pessoas com deficiência auditiva entre surdos (apenas os que comunicam com Libras) e o restante como deficiente auditivo”, explica.
Joaquim vê de forma bastante positiva esse aumento no quadro de candidaturas de surdos, mas chama atenção que o fator humano deve sempre prevalecer no juízo do eleitor. “É um avanço, mas política é um jogo coletivo que depende dos outros políticos para aprovação. Além disso, não é porque a pessoa é surda que ela vai ser boa. Isso não define caráter”.
Pesquisa divulgada em outubro de 2019 pelo Instituto Locomotiva e pela Semana de Acessibilidade Surda revelou a existência no Brasil de 10,7 milhões de pessoas com deficiência auditiva. Entre elas, 2,3 milhões têm deficiência severa – desses, 15% já nasceram surdos.
Para Valdo Nóbrega, professor de Libras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) que perdeu a audição aos nove anos, a maioria dos políticos não entende e não atende às pautas dos surdos. “Além disso, nós não estamos acostumados a nos colocar politicamente”, observa. Por isso, segundo ele, tem ocorrido essa busca por representatividade
e sair da ingerência dos políticos sobre a comunidade no espaço público. “A comunidade está querendo tentar a todo custo mudar esse quadro”, constata o professor.
Mais raros ainda são os candidatos que foram efetivamente eleitos: quatro no total. Tibiriçá Vianna Maineri, vereador do Republicanos na Câmara de Caxias do Sul (RS); Cailan Silva Barros, vereador do Republicanos na Câmara de Água Fria (BA); Lucas Botti, vereador do MDB de Ibiporã (PR), e Pedro Henrique de Macedo Silva, vereador eleito pelo Democratas de Catalão (GO), hoje no Podemos. Tibiriçá, Lucas e Pedrinho são candidatos à reeleição este ano. Em todos esses casos, sem exceção, houve a necessidade de adaptar as câmaras municipais para integrar os políticos, especialmente com a contratação de mais intérpretes de Libras, profissão regulamentada há apenas dez anos através da Lei nº 12.319.
Fundo eleitoral: a cada R$ 1 para candidatos brancos, R$ 0,08 para pretas