No próximo dia 7, o Supremo Tribunal Federal (STF) deverá retomar o julgamento da ação que discute a validade das demarcações de terras indígenas posteriores à aprovação da Constituição, em 1988, ou se esta representa um marco temporal definitivo. Esse tema é de especial interesse do agronegócio brasileiro, que expande sua fronteira no sul da Amazônia. Para garantir que o resultado não seja desfavorável ao setor, a bancada ruralista da Câmara dos Deputados articula para avançar com a votação do Projeto de Lei 490/2007, que define expressamente a data de promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988, como marco temporal.
Se aprovado, o PL do marco temporal pode representar a perda de 63% das terras indígenas demarcadas ou em processo de demarcação no Brasil. Evair de Mello (PP-ES), vice-presidente da bancada ruralista na Câmara, defende que é uma medida necessária para garantir a segurança jurídica do setor. O parlamentar também considera que a delimitação pela via jurídica não é compatível com o preceito constitucional.
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“Com o projeto, nós vamos reconhecer aquela legitimidade da demarcação feita pela casa do povo, que é a Câmara dos Deputados. O Congresso representa o povo brasileiro e, portanto, tem a legitimidade das ruas. O PL 490 representa isso. Ele respeita aquilo que foi acordado no texto constitucional em 1988, e traz segurança jurídica para o agronegócio brasileiro. O horizonte do agronegócio é o marco temporal, seria uma insanidade querer regredir nesse sentido. Foram bilhões de reais em investimentos feitos respeitando a Constituição”, afirmou o deputado ao Congresso em Foco.
Evair conta que o projeto é endossado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que se comprometeu a garantir uma rápida tramitação. Lira concretizou o gesto na quarta-feira (24) ao aprovar o requerimento de urgência do projeto.
Apesar da agenda voltada ao julgamento, o líder ruralista não considera a votação como um recado ou um meio de pressão à Suprema Corte. “Quando o Legislativo não cumpre seu papel, o STF está se sentindo no direito de fazer. Naturalmente, quando o Congresso falar, não há a necessidade dessa manifestação do Supremo”.
“Genocídio legislado”
A possibilidade de votação do PL 490 é vista com preocupação pelos movimentos de defesa dos direitos dos povos indígenas. Esse temor é compartilhado pela deputada Célia Xakriabá (Psol-MG), presidente da Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais na Câmara. “Estamos aqui para assinar e não para assassinar direitos. Acabar com as demarcações, ameaçar os territórios que já estão demarcados e permitir que a mineração e os projetos que poluem e nos matam é promover um genocídio legislado”, declarou.
PublicidadeA deputada avalia o caso não como uma questão econômica, mas como uma questão humanitária que envolve diretamente a sobrevivência dos povos indígenas. “Uma questão para todos e todas. Se vocês não morrem com a violência que assola os nossos territórios, morrerão com o veneno que chega em sua mesa. É preciso sensibilidade e compromisso para enterramos o PL 490 e dizer não ao Marco Temporal”, disse visando o parlamento.
Evair de Mello diz estar confiante quanto ao resultado das futuras votações de urgência e mérito do projeto. Célia já cobra do governo uma postura firme a respeito. “Não adianta ter um governo que acena na defesa dos direitos dos povos indígenas e um Congresso que vai na contramão e quer continuar o projeto programado de ecocídio dos últimos quatro anos”.
Antiga disputa
O PL 490 tramita há mais de uma década na Câmara dos Deputados, e foi alvo de disputa constante entre ruralistas e indígenas desde a sua proposição. Ao longo do governo Jair Bolsonaro, ganhou novo fôlego, e avançou de forma paralela nas comissões enquanto a Advocacia-Geral da União dava andamento à ação semelhante no STF.
Em meados de 2021, indígenas de todo o país montaram um acampamento em Brasília para, ao mesmo tempo, protestar contra a ação e articular com deputados para que não permitissem o avanço do PL 490. Na esfera jurídica, o esforço foi bem sucedido, e o julgamento ficou suspenso por mais de um ano. Na Câmara, a bancada ruralista já garantiu a aprovação do texto na Comissão de Constituição e Justiça, e o projeto desde então aguarda sua votação em plenário.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) acompanhou a tramitação de perto, e alertou para detalhes do projeto que vão para além do marco temporal. Além de representar a possibilidade de perda de mais da metade das terras indígenas demarcadas ou em demarcação no Brasil, ele conta com uma série de projetos apensados que tornam a delimitação ainda mais dificultosa.
Uma nota técnica da assessoria jurídica do Cimi identificou que o relatório conta com “a previsão de flexibilizar o usufruto exclusivo das terras indígenas pelos povos originários, garantido pela Constituição, e inclusive a possibilidade de que a União se aproprie e disponibilize para a reforma agrária terras em que tenha havido ‘alteração dos traços culturais da comunidade’”. Parte da Câmara dos Deputados ainda busca avançar em projetos que permitam a mineração dentro dessas terras.
Sonia Guajajara, ministra dos Povos Originários, alerta para um outro elemento do projeto: a PEC 215/2000, apensada a ele. Ela retira do Poder Executivo a competência pela demarcação de terras indígenas, e a entrega ao Poder Legislativo. Com isso, os povos indígenas passam a depender do Congresso Nacional para a delimitação de suas terras.