A cerca de 60 quilômetros de Brasília, adolescentes de 14 a 17 anos internados em uma unidade socioeducativa têm apenas duas oportunidades para ir ao banheiro ao longo de todo o dia. São 15 minutos pela manhã e outros 15 minutos no fim da tarde. Caso tenham de fazer suas necessidades fisiológicas fora do horário previsto, têm de recorrer a marmitas de isopor, para defecar, e galões de produtos de limpeza de 5 litros, para urinar. Necessidades essas feitas na frente dos demais colegas de dormitório, em ambientes fétidos, sem ventilação.
Essa foi a realidade encontrada pela Defensoria Pública de Goiás e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura , órgão vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) de Luziânia (GO), uma das principais cidades do Entorno do Distrito Federal. A visita foi feita no início de novembro, mas o relatório foi concluído e encaminhado às autoridades goianas nessa terça-feira (9). Também foram encontradas condições degradantes em um presídio feminino, na mesma cidade, e em um masculino, em Planaltina de Goiás, também no entorno.
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Além de fazerem suas necessidades em marmitas e galões, os internos não têm acesso à água corrente em seus dormitórios, o que os impede de lavar as mãos para fazer a higiene pessoal.
Um dos responsáveis pelo relatório, Daniel Caldeira de Melo, perito do Mecanismo, diz que nunca viu, em suas inspeções, um caso de privação de uso de banheiros. “Não ter acesso ao banheiro, na minha experiência, é algo que nunca tinha me deparado antes. Normalmente nos deparamos com falta de acompanhamento das medidas socioeducativas, dificuldade de acesso à escola, uso da força desmedido”, disse Daniel ao Congresso em Foco.
Publicidade Para ele, a situação precária já virou natural para os funcionários da unidade. “É uma unidade antiga. Estima-se que há dez anos esteja nessa situação, está naturalizado pelos funcionários. Eles chegaram a contar que, quando sobram galões na casa deles, eles levam pra lá para dar mais ‘conforto’ para os adolescentes”, conta Daniel.O relatório também aponta risco de incêndio devido à precariedade da rede elétrica, com fios e bocais de lâmpadas soltos e falta de medidas preventivas. “A rede hidrossanitária da unidade é antiga, com escoamento de esgoto aberto, além da estrutura física apresentar diversos pontos de infiltração”, complementam os técnicos que visitaram a unidade.
Covid em presídio feminino
Também foram consideradas degradantes as condições encontradas na Unidade Regional Prisional Feminina de Luziânia. Durante a visita foi constatado um início de surto de covid-19 na carceragem. Das 110 internas no momento da inspeção, 22 mulheres estavam diagnosticadas com a doença.
Onze das 22 detentas infectadas pelo novo coronavírus estavam isoladas nas celas destinadas ao castigo e de isolamento, já em situação de confinamento, sem direito a banho de sol há mais de 20 dias. “Essas celas não possuíam iluminação natural adequada nem ventilação cruzada, como prevê a LEP [Lei de Execução Penal]. Eram celas escuras, que comportavam seis presas, mas estavam com nove e sete presas cada uma”, narra o relatório.Em uma das celas, onde deveriam estar seis presas, havia 14. “As celas não possuem janelas ou aberturas na parte de trás, para que haja circulação de ar. As grades são a única fonte de ar e luz das celas. Todas as paredes das celas possuíam mofo, infiltrações e tinham o sistema hidrossanitário comprometido”, segundo os inspetores. De acordo com o relatório, são frequentes os transbordamentos de esgoto, que possuem um forte odor desagradável comum aos esgotos públicos. Durante o período da inspeção, houve transbordamento, logo após as detentas terem lavado os utensílios de cozinha, talheres e pratos e copos que foram utilizados no almoço. Nos períodos de chuva, conforme as detentas, as águas desses bueiros invadem as celas.
“A água que elas consomem para matar a sede é a da pia do banheiro, sem qualquer tratamento ou filtragem. A situação é agravada por conta da caixa d’água ser em uma localização onde, por muitas vezes, animais caem e acabam morrendo e contaminando a água. Também são comuns as faltas de água na unidade”, relatam os técnicos que visitaram a unidade.Violação à Lei de Execução Penal
A 115 quilômetros de Luziânia, em Planaltina de Goiás, também no Entorno do DF, O Mecanismo e a Defensoria Pública encontraram violações aos direitos humanos. “Foi identificado um modelo de gestão prisional que contraria os direitos estabelecidos na Lei de Execução Penal, visto que é praticado um regime mais gravoso que o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), impossibilitando remição de pena, seja pelo trabalho ou pelo estudo, limitando contato familiar por parlatório (antes da pandemia) e aplicação de sanções coletivas sem que houvesse cometimento de faltas e a devida individualização e instalação das comissões disciplinares”, diz o relatório a respeito da Unidade Prisional Especial de Planaltina.
Inaugurada há apenas dois anos, em 2019, a unidade contava com 215 presos no regime fechado durante a visita, em novembro. Mas as instalações já apresentavam danos de uma construção antiga. Daniel Caldeira conta que o modelo adotado na unidade segue o dos presídios federais de segurança máxima, embora não seja esse o caso. Também é restrita a oferta de refeições. São apenas três ao longo do dia, quando deveriam ser oferecidas cinco.“Deveria ser garantida a remição de pena, seja por estudo ou leitura. Em qualquer regime disciplinar diferenciado, dos presídios federais, tem justificativa e tempo para acontecer. Também não há restrição para contato familiar. Foram retiradas as bíblias de todos os presos como forma de sanção coletiva, quando a punição deveria ser individualizada. Isso fere a Lei de Execução Penal. Durante a pandemia, nem email nem carta ou videochamada podem ser trocados lá“, relata Daniel.
Tortura
O relatório conclui com uma série de recomendações ao Ministério Público e ao governo de Goiás, com sugestões para melhorar as condições dos detentos e dos adolescentes infratores. Para o perito do Mecanismo, nas três unidades goianas visitadas está caracterizada a prática de tortura.“As pessoas costumam pensar que a tortura é apenas física, aquela do olho roxo, dos dedos quebrados, de corte na cabeça. Mas tanto a convenção para prevenir e punir a tortura quanto a convenção da ONU contra tortura e outros tratamentos degradantes entendem que a a tortura é uma ação intencional, de causar intenso sofrimento físico ou mental, com várias finalidades, seja constranger, coagir ou intimidar, e causada por um agente público. Seja pela ação, seja pela omissão do Estado, a tortura é perpetuada na gestão pública”, explica Daniel.
Segundo Philipe Arapian, coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública de Goiás, apenas o Centro de Atendimento Socioeducativo de Luziânia, onde há restrições para o uso de banheiros, se comprometeu reformas no local. Até o momento, nenhum outro órgão do governo de Goiás responsável pelo assuntou comunicou a adoção de medidas à DPE.
Ele explica que é um dos deveres da Defensoria Pública fiscalizar os presídios de cada estado, porém segundo ele, a estrutura do órgão ainda é muito pequena para atender toda a demanda.
“Em unidades prisionais que, por exemplo, não há nenhuma oportunidade de estudo ou de trabalho a chance de ressocialização é muito menor, é ínfima. Isso é dado, quanto mais oportunidade de trabalho, a pessoa não reincide”, explica. Ele pontua também que as violações dos direitos humanos nos presídios são um problema crônico no Brasil.
O Congresso em Foco procurou o Departamento de Administração Prisional de Goiás e a Secretaria de Desenvolvimento Social para comentar as denúncias apontadas pelo relatório. Até a última atualização desta reportagem a secretaria não enviou resposta.
Em nota, a Polícia Penal do Estado de Goiás afirmou que parte das denúncias não procedem e que, em relação a outras, providências já foram tomadas. Leia a íntegra:
“A propósito de informações solicitadas pelo Portal Congresso em Foco, a Polícia Penal do Estado de Goiás informa o que se segue:
– Embora a instituição administrativa tenha sido oficialmente notificada na manhã desta quarta-feira, 10/02, sobre o relatório produzido pela Defensoria Pública do Estado de Goiás, em conjunto com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, a 3ª e 9ª Coordenações Regionais Prisionais do órgão, as quais são responsáveis pelas unidades prisionais citadas no referido documento, salientam que não procedem alguns dos apontamentos e em outros casos providências já foram tomadas.
-Ressalta que o fornecimento d’água em ambas unidades está normalizado, que a realização de transferência de custodiados são realizadas com base em atos administrativos em autonomia institucional determinada pela lei estadual 9.517/19; e que as estruturas dos mencionados presídios são relativamente novas. As visitas de familiares e atendimentos de advogados estão sendo realizadas com base conforme protocolo de prevenção contra a covid-19, assim como a entrega da cobal.
-Esclarecem que semanalmente são entregues colchões, uniformes e kits de higiene aos custodiados dos mencionados presídios. E com base na Lei de Execução Penal (LEP), são realizadas ações que visam a remição da pena, como por exemplo a remição por leitura.
– Diante do questionamento da disponibilização de interfones para o atendimento dos profissionais da defesa, as coordenações regionais prisionais informam que são disponibilizados aparelhos para a realização das atividades. Sendo que, nos próximos dias serão entregues novos aparelhos na Unidade Prisional Especial de Planaltina ampliando os atendimentos.
– Em relação à alimentação, diariamente são feitas entregas aos custodiados três refeições: desjejum, almoço e ceia. Os cardápios são supervisionados por nutricionistas e por visitas extraordinárias de uma comissão composta por servidores, familiares de presos e representantes de órgãos da execução penal.
-Mediante questionamento em relação a caso de óbito na Unidade Prisional Regional Feminina de Luziânia, a 3ª Coordenação Regional Prisional, a qual a unidade pertencente, salienta que não foi registrado nenhum óbito no mencionado presídio e que as custodiadas, além de receber o acompanhamento médico necessário, passam por testagem rápida e ficam em isolamento, quando o diagnóstico para a COVID-19 é confirmado.
– O controle do número de casos na população carcerária em Goiás é um dos fatores que o Comitê de Operações Estratégicas – COE do Estado de Goiás analisou para aprovar a reabertura gradual das visitas sociais nos estabelecimentos penais do Estado. Goiás foi o último estado do país a registrar casos da doença na população carcerária.
– Diante do contexto causado pela pandemia, o órgão de imediato, ainda em março de 2020, iniciou ações como medida de combate e prevenção da doença, como a disponibilização de equipamentos de proteção individual, itens de higiene como álcool em gel 70%, além da proibição de visitas, higienização dos ambientes prisionais, busca ativa dos casos por meio da realização de testes, dentre outras.
– Diariamente são divulgados dados atualizados referente a doença no sistema prisional goiano nos canais oficiais da instituição.
Segue, abaixo, a relação completa das ações da DGAP no enfrentamento da pandemia no sistema penitenciário goiano:
1. A criação de um Comitê de Gerenciamento da Crise sobre coronavírus no sistema penitenciário, logo no início da pandemia em Goiás, o que refletiu na rapidez de ações enérgicas preventivas e proativas eficientes para o controle da doença. O comitê se reúne constantemente para avaliações e tomada de novas decisões conforme o quadro da doença afim de garantir soluções rápidas e análise constante da realidade da doença no sistema. Com isso, Goiás foi o último Estado a registrar casos positivos entre a população carcerária no país.
2. A suspensão das visitas em março, logo no início da pandemia em Goiás, de atendimentos presenciais de advogados, de atividades assistenciais de trabalho e religiosas. Neste caso, para o cumprimento da adequada assistência jurídica, foram instalados interfones em unidades prisionais para facilitar o contato entre advogado e cliente, em parceria com a OAB-GO, além de mecanismos de videoconferências entre juízes e presos para continuidade dos processos.
3. A utilização da Casa do Albergado e da Colônia Agroindustrial do Regime Semiaberto como “unidades de triagem” para os presos que ingressarão no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. Nesta ação, todo preso encaminhado pelas polícias Civil ou Militar só ingressa nas unidades que compõem o Complexo Prisional de Aparecida de Goiás, após passarem por um período de quarentena em um desses dois estabelecimentos penais.
4. A aquisição, com recursos próprios e parcerias, de EPIs para servidores, além de produtos destinados à higiene pessoal e desinfecção de ambientes prisionais. São produzidas máscaras em unidades prisionais com utilização de mão de obra carcerária.
5. A distribuição de máscaras aos custodiados que laboram nas unidades prisionais ou que tenham que deixar a Unidade por algum motivo.
6. Todas as Unidades do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia receberam remessa de medicações para extermínio de parasitas prejudiciais à saúde. As nove regionais também contam com produtos para desinfecção de ambientes.
7. A realização de adaptações da Colônia Agrícola do Regime Semiaberto, o que propiciou uma unidade básica de saúde para aprimorar a triagem de presos que serão inseridos no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia.
8. A promoção de palestras a respeito dos procedimentos de prevenção e de combate ao coronavírus e treinamentos sobre a utilização dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) a servidores. Além disso, vídeos, cards e áudios produzidos pela instituição compõem a campanha educativa para servidores publicada em redes sociais e no site do órgão.
9. A aquisição de pulverizadores e insumos (desinfetante à base de quaternário de amônio) com os quais foi realizada a desinfecção das Unidades Prisionais do Estado (carceragens, áreas administrativas e embalagens dos produtos levados por familiares aos presos) e demais departamentos que integram a DGAP.
10. A desinfecção de viaturas é realizada sempre que conduz preso com alguma suspeita de contaminação.
11. Testagem de todos os servidores e presos sintomáticos de todo o Estado (planejamento em execução).
12. Divulgação de boletim diário sobre a atualização do quadro da doença no sistema prisional entre servidores e presos, nas redes sociais e site da DGAP.
13. Conclusão da entrega de dois termômetros infravermelhos por unidade prisional do Estado para a medição de temperatura corporal de servidores e de presos dos estabelecimentos penais da DGAP.”
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