“Para os fins da presente Convenção, o termo ‘tortura’ designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência.”
A citação que fazemos aqui questão de destacar foi extraída do Artigo 2º da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, promulgada pelo Brasil em 1989, após sua aprovação em Cartagena, Colômbia, em 1985. O que parece não se relaciona de pronto com o título deste texto, logo fará toda lógica.
Primeiramente, faz-se bem entender que “bugreiro” foi como ficaram conhecidos os “caçadores de índio”, como o foram os bandeirantes em determinado período da colonização brasileira. Parte da diferença se dá pelo fato de esses “novos bandeirantes” não buscarem “prear” indígenas para o trabalho escravo, mas, como também fizeram os antigos bandeirantes, terem sido responsáveis pela “limpeza” dos territórios de interesse. O próprio nome já era a reafirmação racista e discriminadora dos povos, chamados “bugres” pelos invasores das terras até então de Kaingang, Guarani, Xokleng, Xetá, povos da região sul brasileira.
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Onde esse paralelo, então, se atualiza? Por que falamos de “novos” e o que isso tem a ver com a referida Convenção? Não está, felizmente, na retirada das orelhas para se provar quantos indígenas se “caçou”. O paralelo é outro.
No dia 15 de fevereiro, ironicamente no dia posterior ao lançamento da Campanha da Fraternidade pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que traz o tema “Fraternidade e superação da violência”, 12 famílias do povo Kaingang, que ocuparam na manhã daquele mesmo dia uma área em Passo Fundo (RS), foram duramente reprimidas por forças policiais.
Não é desconhecido, e reafirmamos em diferentes artigos nesta coluna, que os direitos dos povos indígenas sobre seus territórios tradicionais seguem negados, processos demarcatórios paralisados, inclusive, com base em um parecer (001/2017) da Advocacia Geral da União, já chamado pelos povos de parecer anti-demarcação. Frente a essa paralisação, os povos vêm buscando formas de se manifestar e provocar ações concretas por parte dos poderes públicos. Assim fizeram as 12 famílias, ocupando uma área pública (do DNIT) próximo ao município de Marau, para chamar a atenção e cobrar a demarcação de seu território.
Sem qualquer mandato judicial, que mesmo existente não justificaria tamanha brutalidade, os Kaingang foram violados no seu direito à manifestação e violentados com crueldade paralela aos tempos coloniais. Pelo menos 30 policiais da Brigada Militar e do Batalhão de Operações Especiais agrediram e torturaram um idoso de mais de 80 anos. Esse, além de receber pelo menos 13 disparos de bala de borracha na mesma região da perna, próximo ao joelho – o que só poderia ocorrer se estivesse imobilizado – veio a desmaiar após as agressões. As fotos divulgadas, que demonstram a perna ferida do indígena, ouvido machucado e outras marcas pelo corpo, dispensam legendas.
Outros indígenas Kaingang, inclusive crianças, foram atingidos por disparos e sofreram humilhações, como evidenciou o vídeo produzido pelo Portal Desacato.
Mesmo com a gravidade, os indígenas encontraram inicialmente dificuldades para fazer o exame de corpo de delito. Recorremos novamente à Convenção, que afirma em seu Artigo 13º que Cada Estado Parte assegurará que qualquer pessoa que alegue ter sido submetida a tortura em qualquer território sob a sua jurisdição tenha o direito de apresentar queixa e de ter o seu caso rápida e imparcialmente examinado pelas autoridades competentes do dito Estado. Serão adotadas providências no sentido de assegurar a proteção do queixoso e das testemunhas contra qualquer maus-tratos ou intimidações resultantes de queixa ou depoimento prestados.
Em nota, o Conselho Indigenista afirmou ser “necessário e urgente pôr fim à violência e que o Estado promova a responsabilização por essas práticas. Não pede menos do que afirma a referida Convenção, em seu artigo 4º:
“Cada Estado Parte assegurará que todos os atos de tortura sejam considerados crimes segundo a sua legislação penal. O mesmo aplicar-se-á à tentativa de tortura e a todo ato de qualquer pessoa que constitua cumplicidade ou participação na tortura.”
Assim esperamos, em nome do Estado Democrático de Direito.