O que restaria para nós, sem a violência política de gênero e raça do Brasil? Uma história diferente, é claro. E nessa história outra gramática política, com diretrizes que ampliam a compreensão sobre os sujeitos de direito e agendas sobre meio ambiente, saúde, trabalho, seguridade social, educação, apenas para citar algumas das mencionadas no documento analítico da Marcha das Mulheres Negras Contra a Violência e pelo bem Viver, de 2015.
Em um universo de sub-representação, para os incautos, a simples presença de mulheres em sua diversidade – e aqui tratarei especificamente das mulheres negras- evidenciaria os problemas de uma composição parlamentar hegemonicamente masculina e branca em um país, diferentemente, feminino e negro. Mas a exposição dessa massa uniforme que hoje vemos na política revela mais: revela um modelo de gestão falido, que amplia desigualdades enquanto promete gerenciar crises.
As mulheres negras, por sua vez, vêm desenvolvendo associativamente um projeto político sobre esse país e que tem por característica enfrentar crises para diminuir desigualdades. É o justo oposto. Projeto esse que vem há décadas sendo ora interrompido ora colocado em segundo plano, diante da emergência de assegurarmos a vida dessas mulheres. Há uma clara estratégia de bloqueio à presença e história das mulheres negras na política no Brasil, e que tem nome, práticas conhecidas e casos tristemente emblemáticos: falamos da violência política de gênero e raça.
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Afirmo que nesse país, em que o racismo estrutura as relações, impossível seria que a violência política de gênero tivesse como vítimas as mulheres em sua diversidade sem a marca da perversidade sobre os corpos e vidas das mulheres negras. Sobretudo se considerarmos as raízes coloniais dessa violência, de expressões tão agudas quanto corriqueiras, misturadas ao íntimo do racismo à brasileira. Quem aqui não se lembra do episódio em que a ex-Senadora Regina Souza (PT) foi chamada de “tia do cafezinho” durante uma sessão plenária, por jornalistas? Infelizmente, casos como esse, não são nada incomuns na vida parlamentar de mulheres negras.
Mas acontece que a expressão eleitoral dessas mulheres parece ter implicado num crescente de ataques, que vêm se tornando (ainda) mais graves, deixando por terra o mal-ajambrado disfarce. Desde o resultado das eleições de 2020, com a votação acachapante de vereadoras negras (cisgênero e transgênero) por diversas cidades no Brasil, inclusive capitais, acompanhamos uma crescente e ininterrupta sequência de ataques a essas novas parlamentares e a uma prefeita (essa também uma mulher negra, Suellen Rossim, da cidade de Bauru).
Da imprescindível Érika Hilton (PSOL) à Carol Dartora (PT), primeira e terceira vereadoras mais votadas de São Paulo e Curitiba respectivamente, passando pelas demais co-vereadoras atacadas nas últimas duas semanas, essas mulheres têm visto o seu exercício político violado quando, além de ameaçadas precisam desenvolver em primeiro lugar estratégias para assegurar suas vidas, na maioria das vezes sem suporte adequado das Casas Legislativas e/ou de seus partidos políticos. Apenas depois dessas medidas têm a oportunidade (que na bem da verdade, em qualquer democracia, é um direito) de defender o trabalho e projeto para o qual foram eleitas em seus municípios.
>Mulheres negras e poder: um novo ensaio sobre as vitórias
Quantos de vocês já pararam para se perguntar sobre qual é o programa político que as mulheres negras eleitas têm para os seus municípios e para o Brasil?
Já em 2015, o movimento de mulheres negras marchou até Brasília. Após três anos de intensa mobilização nos estados, cidades e interiores, em 18 de novembro, a capital da República acordou com a presença de mais de 50 mil mulheres negras na Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver. Essas integrantes do movimento de mulheres negras brasileiras – jovens e idosas, de religiões de matriz africana e evangélicas, empregadas domésticas e quilombolas, estudantes e professoras, sindicalizadas e desempregadas, artistas e funcionárias públicas, em um matiz sem fim de pertencimento político – foram à Brasília como militantes e lideranças de um país que precisa, urgentemente, praticar a justiça racial e social.
O seu Documento/Manifesto descreve uma densa elaboração sobre agendas indispensáveis para o desenvolvimento nacional e em defesa da vida. E nesse mesmo 2015, durante essa Marcha pacífica, carregando APENAS cartazes, se presenciou à luz do dia disparos de armas de fogo e ameaças contra a vida dessas mulheres. Sim, o grupo acampando há meses à frente do Congresso Nacional ousou o máximo: tiros contra as manifestantes. E tais ataques só cessaram após a deputada federal Benedita da Silva (PT) exigir, dentro do Congresso Nacional durante uma sessão plenária, que a polícia legislativa interviesse. E esse foi um episódio marcante que entrou para a história violenta do país, no lugar do documento regiamente elaborado sobre o que essas mulheres queriam para o Brasil.
Há muito trabalho construído e desenvolvido pelas mulheres negras, abafado estrategicamente pela violência política de gênero e raça a que são expostas. O programa “Roda Viva” que foi ao ar essa semana com a vereadora Érika Hilton revelou para o Brasil reflexões de uma parlamentar afiada, inteligente, que tinha muito a falar sobre seu programa de ação política. Revelou-se para quem quisessem ouvir um projeto político distinto daquele distorcido pelos seus detratores: inclusivo, com respostas práticas, que apresenta saídas para o cenário de horror no qual vivemos.
E aqui não se pretende homogeneizar as mulheres negras, nem seus trabalhos e projetos. Há sim, por aí, uma diversidade de intenções e práticas que não conhecemos plenamente. Por isso o que importa é saber por quanto tempo mais trataremos a violência política de gênero e raça como um problema de algumas, enquanto décadas de trabalho são invisibilizadas e adiadas, para garantirmos o básico: que essas mulheres estejam vivas para mostrarem, enfim, ao que vieram.
As manifestantes da Marcha de 2015, guerreiras e corajosas, puseram fim ao acampamento antidemocrático. Não foi o momento de corpos caídos. Pois não restam dúvidas: conhecer a política de mulheres negras vivas é um direito de todas e todos nós!
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