A ordem de prisão dada por Luiz Fux é uma perfeita celebração do 50º aniversário do Ato Institucional nº 5 – o famigerado AI-5, uma das mais repressivas medidas da ditadura militar. Aliás, como todos os que envelhecemos, esta nova versão da AI-5 é ainda mais arbitrária, cruel e totalitária do que a daquela época, pois, pelo menos, aquela tinha formulação jurídica, e todo mundo sabia que sob ela podia ser feita qualquer arbitrariedade. Esta não, é uma nova modalidade: AI-5 pelas costas…
A detenção de Battisti na “calada da noite” é um típico abuso, já que não existe qualquer delito que possa servir de pretexto razoável para esse ato. O único compromisso de Battisti com a lei brasileira é uma audiência que, se não me engano, deverá ser em março de 2019 em um tribunal federal regional, e por um assunto que nada tem a ver com extradição.
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A lei autoriza a deter preventivamente uma pessoa cuja extradição vai ser julgada. Porém, a extradição 1085 foi fechada definitivamente em 08 de junho de 2011, por decisão do próprio Supremo Tribunal Federal (STF), por 6 votos contra 3.
A Excelentíssima Eminência do Excelso Pretório esqueceu disso? Nossa! Que esquisito! Ele esteve naquela audiência e foi uma das vozes mais escutadas. Aliás, continuou com o caso desde aquela data até hoje. Ele redigiu o edital, bem longo e detalhado, com muito entusiasmo e força, o que nos fez pensar que estava totalmente ciente da justiça daquele ato. Para mim, desiludir-se das pessoas é muito mais grave que desiludir-se das leis ou de quaisquer outros rituais.
Agora, o que acontece?
Agora não temos mais a 1085. Então, há duas possibilidades, ambas ilegais:
Publicidade- Fazer um novo pedido de extradição, que sabemos que a Itália fez de maneira clandestina, mas que nosso Judiciário admitiu.
Porém… será que nos anos 80 já não se ensinava mais nas faculdades de Direito o princípio de non bis in idem? Que eu saiba, Battisti não viajou mais à Itália depois de vir ao Brasil. Como será que ele fez para cometer um novo crime, que mereça agora um novo pedido de extradição?
Pode ser que ele tenha usado algum milagre, neste Brasil que em três meses virou o reino dos messias e das/dos goiabas. Mas, eu duvido, porque nossos novos amos bíblicos não usariam seu poder taumatúrgico para beneficiar um “terrorista”.
Outra coisa pode ser que as famosas quatro vítimas (cujos oito reais matadores, salvo um, já cumpriram sua pena há mais de 15 anos e estão todos em liberdade) se tenham reproduzido (esse outro autor dos ataques do qual não se sabe nada é Pietro Mutti, que parece ter sido apagado pela DIGOS para queimar seu arquivo). Essa reprodução dos mortos pode ser um milagre, na bela Itália que produziu tantos santos.
- A segunda possibilidade é que Fux tenha reaberto a causa. Mas, como se faz isso? A única maneira é violando o artigo 54 da Lei 9784, que, apesar de toda a fala de bacharel de Raquel Dodge (ou, se preferem mais chique, a LLM Harvard), está vigente, e se aplica ao caso de maneira perfeita. Com efeito, o ato de recusa da extradição foi um ato administrativo, baseado no artigo 3, inciso 1, letra f do Tratado de Extradição entre o Brasil e a Itália.
Que seja um ato soberano da presidência da República só acrescenta um dado formal. Todo ato autônomo do chefe do Estado é um ato soberano. Até render-se numa guerra, mesmo sob o fogo inimigo, é um ato de soberania.
O que dizem os office boys/girls jurídicos dos golpistas é uma simples tautologia. Por isso é a única coisa verdadeira que a atual equipe jurídica do governo já disse. Se “soberano” significa discricional, certamente não é. O ato de Lula esteve baseado no TRATADO, e sua decisão foi julgada, como disse acima, pelo plenário do STF e aprovada por 6 a 3. Foi muito claro, em todo momento, que o STF tinha poder para rejeitar o decreto de Lula, se este tivesse tido qualquer defeito formal ou semântico, em qualquer sentido.
A ideia de que a soberania é um cheque em branco que se passa de um chefe de Estado a outro e permite até modificar o passado é, sem dúvida, repugnante a qualquer mente democrática e civilizada. A pena é que estamos nas hipóteses opostas. Talvez seja impossível encontrar, nos últimos dois meses, em qualquer lugar do mundo (mesmo na Somália ou na Eritreia) um sistema jurídico, político, social, teológico, militar, etc, que tenha atingido um estado tão assustador como o nosso. Quem duvida, pode ler numerosas publicações internacionais, como Wire, Guardian e até o New York Times.
Em qualquer caso, como disse ontem a noite um alto funcionário internacional ao saber do caso: por que tanta pressa? Por que condução coercitiva? Desde que foi solto, em 2011, Battisti não faltou nunca a nenhuma convocação oficial.
Mais grave ainda, o ato de Fux atropela o artigo 55 da Lei 13445, que proíbe de maneira incondicional a expulsão do país de um pai de brasileiro menor (foto abaixo). Dizer que “extradição” não é “expulsão” é um truísmo que todos conhecemos. Mas, o efeito de ambos é o mesmo.
No caso da expulsão de Abdallah Mohamed, que foi relatada por Marco Aurélio de Mello, isso ficou claro, pois na interpretação do relator (acompanhada por outros seis juízes), o objetivo do artigo 55 da lei é manter a unidade familiar e a unidade com o país em que nasceu a criança, que o Judiciário e o Legislativo consideram o assunto de principal interesse do problema.
Aliás, Marco Aurélio aceitou que o caso do africano poderia ser um leading case de repercussão geral, e poderia aplicar-se a um autêntico caso de extradição: o de uma argentina de 37 anos, mãe de filhos brasileiros, que a gangue de Macri pretende capturar.
É muito difícil compreender que se o pai de uma criança é expulso, extraditado ou deportado, o/a menino/a perde essa paternidade, qualquer que seja a sutileza leguleia utilizada?
Aliás, esse caso está cheio de charadas! Por que o ministro Gilmar Mendes pediu vistas ao processo de Mohamed, num momento em que havia unanimidade a favor dele de sete a zero?
Enfim, o medo de que a Lei 13445 fosse aplicada ao caso de Battisti foi o disparador deste “sequestro judicial” (mas não legal) e também o cenário do circo montado por um deputado “binacional” de Paraná. E, sobretudo, pela própria farsa de Salvini.
Ora, gente! Salvini, responsável pelo afogamento de numerosos refugiados na Itália que foram abandonados mar adentro, vem a dizer que não concorda com a vocação pela tortura do Bolsonaro! Quanta sensibilidade para um racista, mafioso, xenófobo, místico e violento.
E por que vem com esta história justo agora? Ele pretende dissimular a existência de um pacto entre as poderosas corporações militares e policiais para torturar Battisti na Regina Coeli, ou, talvez, numa prisão siciliana.
Adivinhar o futuro é coisa de profetas e ungidos. Mas, não podemos negar o caráter científico da estatística. O que Fux pretende fazer não parece ser colocar Battisti preso e esperar uma decisão do plenário. Não tenho, a nível pessoal, qualquer dúvida que (salvo em dois casos), todos os nós no STF estão amarrados – e, aliás, estão também amarrados com os inúmeros nexos exteriores.
Mas, vou mais longe. Acredito que nem isso haverá. É um ato de refinamento intelectual chamar nosso sistema institucional (em conjunto) de fascista. Ele é simplesmente uma enorme rede de máfias que, continuamente, brigam umas com outras. Até temos uma estrutura mafiosa familiar, com quatro filhos masculinos, melhor que no “Godfather”.
No caso de Battisti, todas as máfias e seus seguidores estão de acordo, porque a Itália é uma grande mãe onde sobram os euros. Aliás, o que falta no erário italiano (que coloca o país ao borde da quebra) está nos bolsos dos chefões. Por isso penso que o plano inicial de Fux e seus mandantes é pegar Battisti e passar para Itália sem qualquer pausa.
- Penso que todos os que sofrem a barbárie do atual regime que mostrou seu jaez mesmo antes de começar devem ver o caso Battisti não como o assunto especial de uma pessoa, mas como algo que afronta todo nosso sistema “civilizatório”. Pode parecer um lugar comum, mas não devemos esperar que NÓS SEJAMOS OS SEQUESTRADOS para começar a nos defender e defender nossos afetos. Nesse caso será tarde.
O grande inimigo de todos nós é o medo. Porém, há algo que nos pode dar esperanças. Essa explosão de barbárie nem sempre é favorável aos que a provocam.
Não sei por que, mas ontem lembrei de um senhor muito poderoso da Itália dos anos 40, bem mais poderoso que Salvini, Bolsonaro ou Fux. Ele não foi pego nem pelos aliados nem pelos soviéticos. Quando fugia para a Suíça foi interceptado por um pequeno grupo de populares da resistência, pessoas sem qualquer poder, mas com muita coragem… Ele se chamava Benito Mussolini, e seus seguidores lhe chamavam Il Duce (o condutor). Bons tempos aqueles…
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