Pedro Grigori, Pública
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) tem gerado polêmica desde a sua instituição pela Medida Provisória (MP) 870/19, assinada no primeiro dia do governo Bolsonaro. A MP não mencionava diretamente os direitos LGBT como atribuição da pasta, provocando críticas e suscitando temores na comunidade. Além da ministra, pastora evangélica, a maioria das oito secretarias é dirigida por católicos ou evangélicos ativistas, comprometidos com movimentos que pregam valores religiosos.
A Pública, porém, apurou que até o momento não houve mudanças na equipe de nove pessoas que fazem parte da Diretoria de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – principal grupo de defesa LGBT dentro do governo federal. Transferida para a Secretaria de Proteção Global, a equipe é liderada por Marina Reidel, primeira mulher trans à frente de uma diretoria ministerial. Segundo o MDH, ela será mantida no cargo.
“Toda fala da ministra é no sentido de não tirar direitos e de trabalhar em combate à questão da violência. Até o momento, percebemos interesse do governo em trabalhar em cima dessas questões”, explicou Marina, que assumiu a direção durante o governo Temer, quando os Direitos Humanos voltaram a ter status de ministério. Segundo ela, a mudança de secretarias não tem impactado o trabalho ou a estrutura da diretoria. A diretora é presidente do Conselho Nacional de Combate à Discriminação de LGBT (CNCD-LGBT), ligado ao MDH, e que será mantido.
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A diretoria é responsável por realizar o diálogo transversal com os estados e a Presidência e tem como principal atribuição articular políticas públicas no âmbito federal. Também está a cargo da equipe realizar pesquisas e fazer planejamentos e campanhas. “Recentemente, fizemos um pacto contra a violência, com o objetivo de comprometer os estados na tentativa de diminuir o índice de violência contra LGBTs no Brasil”, diz Marina. O projeto, lançado em junho do ano passado, será mantido. “Abrimos edital com recursos para convênios através de projetos nos estados e instituições indicadas por emendas parlamentares”, explica.
Depois da posse, a ministra Damares Alves ainda não se reuniu com a equipe para definir as prioridades. Com isso, o grupo continua tocando a pauta normalmente. Em dezembro, eles deram início a uma pesquisa para avaliar a violência sofrida por LGBTs dentro do sistema prisional brasileiro.
No dia 20 de dezembro, a diretoria e 30 entidades LGBT se reuniram com a ministra no Gabinete de Transição, em Brasília. Segundo diversos relatos, eles ouviram de Damares que não haverá perda de direitos e de espaço. Militantes de direitos humanos afirmaram que a pastora estava “aberta ao diálogo”, de acordo com quatro pessoas ouvidas pela Pública.
Na oportunidade, os ativistas entregaram uma carta à ministra e ao secretário Sérgio Queiroz, que comanda a Secretaria de Proteção Global. No documento, assinado por 30 organizações, entre elas a Aliança Nacional LGBTI+, Articulação Brasileira de Gays (ArtGay), Rede Trans, Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Evangélicos pela Diversidade, são expostas políticas públicas prioritárias para os LGBTs nas áreas de saúde, educação, emprego, segurança pública e assistência social. Um dos destaques é o alto índice de assassinatos anuais – média de cerca de 300 por ano, segundo a Aliança Nacional LGBTI+.
“Fomos muito bem recepcionados, tivemos uma grande empatia por parte dela e da equipe. O secretário Sérgio pareceu solícito, e os dois nos receberam de uma forma bastante republicana”, explica Toni Reis, presidente da Aliança Nacional LGBTI+. No entanto, ele diz que organizações em defesa das minorias devem continuar em alerta. “Sabemos que o governo que ganhou é mais conservador. Eles são resistentes à nossa pauta em geral. Por isso, precisamos denunciar toda e qualquer forma de discriminação. É preciso fazer muita pesquisa sobre índice de violência, pois precisamos ter provas do que está acontecendo”, afirma.
Pessoas que estavam na reunião contaram que a ministra Damares falou pouco, mas defendeu a necessidade de combater a violência e disse que, se preciso, estará nas ruas com as travestis e na porta da escola com crianças que são discriminadas pela orientação sexual. Ela também destacou a importância de respeitar os direitos humanos, sem fazer ressalvas a pautas específicas para o público LGBT ou detalhar futuras ações. Definições mais concretas viriam após a posse – mas isso ainda não ocorreu.
Para a presidente da Rede Trans Brasil, Tathiane Araújo, que participou da reunião, a fala da ministra sobre as travestis é importante, mas não servirá de nada “se ficar só em palavras”. “A travesti vai parar na esquina não por uma escolha, mas porque muitas vezes ela desiste de estudar ainda na escola, por não conseguir enfrentar o preconceito dentro de sala de aula. Então, para resolver esse problema, seria necessário investir em educação, e o que o governo faz? Tira o debate de gênero da sala de aula”, critica.
A ativista afirma que a escolha de abrigar a Diretoria LGBT dentro da Secretaria de Proteção Global diz muito sobre a atuação que o MDH deve ter. “Temos uma Secretaria da Família no ministério, mas não estamos dentro dela. Por que estamos apenas na de proteção? Pelo visto, por sermos excluídos do seio familiar. Se querem mesmo investir em uma política contra a violência a LGBTs, precisam nos promover socialmente”, diz a presidente da Rede Trans. “Nosso pedido é que se combata a homofobia com educação, desde a sala de aula, onde o preconceito nasce. Atualmente, só se cria políticas para remediar a violência depois que ela já foi causada.”
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As mesmas entidades que participaram da reunião com Damares estiveram em audiência em 29 de novembro com o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli. “Ele garantiu que não tem como o presidente da República retirar direitos que foram garantidos pelo Supremo”, explica o presidente da Aliança. Entre os avanços já garantidos estão o casamento homoafetivo, assegurado desde 2013 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), após entendimento do STF em 2011.
A próxima reunião do Conselho Nacional contra Discriminação LGBT ocorrerá em 11 de fevereiro. A ministra Damares Alves está convidada, representando o governo, mas ainda não confirmou presença. O grupo tem denunciado a retirada pelo Ministério da Saúde das cartilhas de saúde do homem trans e de prevenção às IST, hepatites virais e HIV/aids.
“Esperamos a representação do governo pelo pessoal da ministra, para ter um quadro mais detalhado do futuro. Porque, até então, o que temos visto é um quadro de desmonte em diversos aspectos”, afirma a presidente da Rede Trans.
Secretários conservadores
A pauta LGBT não é a única que vive momento de incertezas dentro do MDH, já que há promessa de mudanças em todas as áreas. A pasta agora conta com oito secretarias – duas a mais que na gestão Temer. Além da Secretaria de Proteção Global, a nova estrutura conta com as Secretarias Nacionais da Família, Juventude, Criança e Adolescente, Pessoa Idosa, Mulher, Pessoa com Deficiência e Igualdade Racial.
A maioria dos secretários que assumiram pastas no MDH são evangélicos ou católicos militantes, tendo atuado na promoção das pautas “cristãs” ou no combate aos direitos LGBT e ao aborto.
A Secretaria de Proteção Global, pasta que abriga agora a Diretoria LGBT, tem como líder o procurador da Fazenda e pastor evangélico Sérgio Augusto de Queiroz. Ele participou do governo de transição e prega nas igrejas Batista Cidade Vida e Batista da Lagoinha, sendo a última frequentada pela própria Damares Alves.
Já a ex-deputada federal Tia Eron (PRB-BA), que lidera a Secretaria da Mulher, é frequentadora da Igreja Universal do Reino de Deus. Ela ministrava aulas na Escola Bíblica Infantil e liderava ações de caridade com as crianças, por isso recebeu o apelido de “tia”. Ganhou visibilidade na mídia em 2016, ao dar o voto decisivo que derrubou o presidente da Câmara Eduardo Cunha na Comissão de Ética.
Uma das ações mais polêmicas da parlamentar, que fazia parte da bancada evangélica, foi assinar Projeto de Decreto Legislativo (PDC) para sustar um decreto do governo Dilma Rousseff que autorizava o uso de nome social por travestis e trans na administração pública. Ela acabou criticada na mídia e nas redes sociais, principalmente porque ela mesma utilizava outro nome na política.
Tia Eron vai liderar a Secretaria que é responsável pelo Disque 180, que recebe denúncias de violência doméstica, e será encarregada de debater – ou não debater – políticas públicas relacionadas ao aborto.
Outra pasta que pode debater o tema é a da Família, que será liderada pela advogada Ângela Vidal Gandra da Silva Martins, filha do jurista Ives Gandra Martins, um grande crítico do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e membro notório do Opus Dei.
Formada em direito pela Universidade de São Paulo e doutora em filosofia do direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ela é membro da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp). No ano passado, defendeu uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF contrária à descriminalização do aborto até a 12ª semana.
Já a jornalista e presidente da ONG Aldeia Brasil, Sandra Terena, comanda a Secretaria de Igualdade Racial, sendo a primeira indígena a liderar a pasta. Assim como Damares, que é conhecida pela evangelização indígena, ela ganhou fama graças à campanha contra o “infanticídio indígena”. Na organização que preside, trabalha com crianças e jovens indígenas e lançou o documentário Quebrando o silêncio, que narra supostas práticas de infanticídio em comunidades indígenas.
Sandra segue a religião do seu povo – que é monoteísta e cujo deus se chama Ituko’ovoti – e também frequenta a igreja evangélica ICP, de Curitiba, ligada à Rede Inspire. É amiga de Damares, que responde a ação do Ministério Público Federal (MPF) por causa de outro documentário, Hakani – Voz pela vida, que inclui dramatização de cenas de infanticídio. Para o MPF, que alega “dano moral coletivo decorrente de suas manifestações de caráter discriminatório à comunidade indígena”, o filme gera manifestações preconceituosas com o objetivo de legitimar ações missionárias nas comunidades. Para a filmagem foram utilizadas crianças da etnia Karitiana, povo que não tem a prática cultural do infanticídio. Segundo o MPF, os indígenas passaram a ser acusados de matar crianças.
Em entrevista ao jornal Gazeta do Povo, Sandra Terena afirmou que o governo Bolsonaro “está dando uma visibilidade inédita para minorias”. Mesmo sendo ativista da causa indígena, a secretária diz concordar com ações polêmicas de Bolsonaro, como transferir ao Ministério da Agricultura a demarcação de terras indígenas.
A pasta da Juventude será chefiada por Jayana Nicaretta da Silva, de 24 anos. Formada em engenharia do petróleo, ela é filiada ao PP, partido pelo qual se elegeu vereadora de União do Oeste, em Santa Catarina, aos 18 anos. Militante pró-Bolsonaro, é católica e se apresenta nas redes sociais como “antifeminista”. Em uma postagem no Instagram, a ex-vereadora conta que recebeu diversos convites para participar de fóruns sobre aborto, machismo e participação feminina na política, mas recusou por não querer dialogar sobre assuntos apenas de mulheres. “Eu gostaria de pedir uma a uma das feministas (as ativistas histéricas) o que exatamente as impedem de conseguir chegar onde querem, qual a força física que as impede, o que exatamente as barra de fazer algo”, escreveu na publicação.
Jayana recebeu a indicação para chefia da Juventude após polêmica ter desgastado o nome de Desire Queiroz (PRB), que tentou ser deputada estadual pelo Mato Grosso, favorita à vaga. Desire integrava a equipe do governo de transição, mas acabou sendo alvo de críticas após ter defendido no Facebook a vereadora Marielle Franco (Psol), assassinada em março do ano passado. Ela foi considerada “esquerdista” por apoiadores do governo e ficou de fora do secretariado.
A liderança da Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência será de Priscilla Gaspar Oliveira, professora de libras e mestranda na área da educação e currículo na PUC-SP. Surdo-muda, Priscilla é amiga da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, que a indicou para o cargo. A professora fazia transmissão em libras de alguns dos pronunciamentos de Jair Bolsonaro pelo Facebook durante a campanha presidencial.
Em 2011, criou um canal no YouTube com vídeos em libras, onde postava variedades do dia a dia, reflexões sobre barreiras enfrentadas por deficientes auditivos e poemas cristãos. Em 2016 criou outra página, usada para ensinar receitas em linguagem de sinais. Pelo Facebook, defende ideias de Jair Bolsonaro e critica opositores.
A Secretária da Pessoa Idosa será liderada pelo dentista Antônio Fernandes Toninho Costa, que já atuou como pastor evangélico da Primeira Igreja Batista no Guará, em Luziânia, Goiás.
Especialista em saúde indígena pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), foi presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) entre janeiro e maio de 2017, durante o governo de Michel Temer. Antes disso, era assessor parlamentar do Partido Social Cristão (PSC) na Câmara dos Deputados, que o indicou para o cargo.
A Secretaria Nacional da Criança e do Adolescente será chefiada pela psicóloga e consultora de políticas públicas Petrúcia de Melo Andrade. A secretária é frequentadora da Igreja Batista Getesêmani, mas, à diferença dos companheiros, não é discípula de Bolsonaro. Ao contrário, Petrúcia é filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT). Segundo pesquisa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 14 de janeiro, o registro da secretária está regular, feito no município de Contagem, em Minas Gerais.
Petrúcia fez parte dos Cristãos Progressistas e esteve entre os 399 evangélicos que, em 2015, assinaram o manifesto “Um Apelo Evangélico: O caminho é mais oração, mais democracia e mais ética”, contrário ao impeachment de Dilma Rousseff (PT).
Medo de perseguição
Do quadro do ministério, quatro exonerações foram publicadas no Diário Oficial da União – todas na edição do dia 7 de dezembro, sendo três na Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e uma na antiga Secretaria de Cidadania. Segundo a assessoria de imprensa, não houve mais exonerações ou contratações.
No entanto, os funcionários terceirizados e comissionados estão inseguros depois de declarações do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni sobre acabar com “ideias socialistas e comunistas” nas repartições, feitas no dia 3 de janeiro, após reunião do presidente Jair Bolsonaro com sua equipe ministerial no Palácio do Planalto. Segundo funcionários ouvidos pela reportagem – que pediram anonimato –, há receio de que o trabalho em defesa de pautas de igualdade para mulheres, discriminação racial e contra a homofobia em redes sociais no passado, por qualquer servidor, seja entendido como “ideologia comunista”.
É comum funcionários usarem suas redes sociais para fazer denúncias de racismo, textos sobre igualdade racial e defesa de ações do próprio ministério. “Nós convivemos e falamos muito sobre esses temas, então vejo como normal usar as redes sociais para fazer publicações falando desses assuntos”, conta uma terceirizada.
Segundo uma funcionária terceirizada ouvida pela reportagem, os colegas ainda estão no escuro sobre como será a atuação do ministério. “Não sabemos se o quadro de funcionários será reduzido. Fomos informados de que mudanças vão ocorrer, mas não disseram quando ou como, e nem se serão mantidas pautas tidas como polêmicas para o novo governo.”
Dentre essas pautas, destaca-se a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que trata da procura de mortos e desaparecidos políticos, tendo foco, principalmente, em casos que ocorreram na época da ditadura militar. “O governo não é a favor da nossa pauta. Para eles, ‘quem procura osso é cachorro’”, afirma um funcionário, relembrando um episódio em que Bolsonaro posou em frente a um cartaz sobre desaparecidos na guerrilha do Araguaia. A comissão é ligada ao MDH desde 2004 e conta atualmente com equipe de oito pessoas.