Recentemente, em resposta aos avanços autoritários do Poder Executivo, diversas lideranças políticas apoiaram a formação de uma Frente Ampla pela Democracia. Mas, qual democracia? No mundo, há democracias e democracias. A qualidade da representação, entendida de maneira simplificada e limitada como a semelhança, ou falta de, entre as características sócio econômicas dos parlamentares e as dos eleitores, varia de país a país: alta na Suécia, baixíssima no Brasil.
No início da atual legislatura o patrimônio médio dos parlamentares brasileiros, segundo o Congresso em Foco apurou com base nas declarações à Justiça Eleitoral, era de R$ 3,5 milhões, e 47% dos deputados informaram patrimônio acima de R$ 1 milhão. Com tal nível de patrimônio, os parlamentares não representam adequadamente a população brasileira.
Essa democracia de baixa representatividade é, por vezes, caracterizada como jovem: apenas 35 anos, se contada a partir de 1985. Desde então, alguns indicadores de “progresso” da população melhoraram (acesso à educação, por exemplo, mas nem tanto sua qualidade), outros pioraram (segurança, empregos, poluição). Assim, será que o apelo de uma frente ampla pela democracia será capaz de galvanizar corações e mentes?
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Seria bom se fosse, mas parece-me que falta algo menos etéreo que esse relativamente vago conceito de “democracia”. Falta algo que, reconhecendo a importância da democracia, a valorize e a aprofunde, sim, mas que seja também mais pé no chão. Algo que diga respeito ao cotidiano da maioria, para mobilizar seu apoio e engajamento, de forma a dar algum rumo ao Brasil, que hoje navega sem direção em mares revoltos.
Exemplo da dubiedade do conceito de democracia: Márcia é uma ótima pessoa, mas nasceu em endereço que não a favoreceu. Ela, de pouco estudo e pouca renda, ficou feliz quando a filha passou no vestibular. Orientada a procurar os instrumentos oficiais de apoio – Fies ou bolsa -, desistiu. Indagada por quê, disse: “me mandaram para aqui, para ali, tinha que mostrar documento disso e daquilo; não dá: é muita democracia”.
A confusão entre burocracia e democracia não deve ser exclusiva da Márcia, já que a burocracia claramente atrapalha a vida e a democracia não tem sido capaz de, real e rapidamente, melhorá-la. Como mobilizar pessoas para lutar por algo tão etéreo? Como dar mais concretude aos pleitos e, por decorrência, lograr mais apoio?
PublicidadeA luta pela democracia e por sua, melhoria – maior representatividade, conforme o conceito acima – há que se associar outros objetivos bem claros e concretos, que digam respeito ao cotidiano da maioria que espera sem saber quando passará o ônibus, que é achacada pela milícia, que aguarda meses por um exame no SUS, que sofre violência cotidiana, que aguarda até desistir de saber quem assassinou seu parente, que vê seu bairro cheio de lixo espalhado, que não consegue um emprego decente e que, como disse Ruy Barbosa há mais de um século, “de tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra; de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desaminar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.”
São urgentes propostas que, além de valorizar a democracia, definam objetivos concretos de melhoria do cotidiano e que enfrentem, sem demagogia, os problemas citados, de forma a superar essa sina e construir um Brasil novo e muito melhor. Faltam-nos lideranças que formulem tais propostas; há, pois, oportunidade para que surjam novas lideranças. Quais as propostas?