Entidades antiaborto pressionaram o Ministério da Saúde a mudar as normas e procedimentos referentes ao aborto legal no Brasil, revelam documentos obtidos pelo Congresso em Foco via Lei de Acesso à Informação (LAI). A influência culminou na edição de uma portaria que definia que médicos, profissionais de saúde e membros do hospital comunicassem o aborto imediatamente à autoridade policial.
O ato normativo também obrigava médicos a mostrarem a imagem de ultrassom do feto antes de conduzir a operação. Tal procedimento foi considerado, por quem defende o direito de escolha das mulheres, uma tentativa de interferir na decisão das grávidas que desejam fazer o aborto.
Duas instituições – Instituto de Defesa da Vida e da Família (IDVF) e Associação Virgem de Guadalupe – pediram à pasta revogação da Portaria nº 1.508/2005, que dispensava a exigência de boletim de ocorrência em casos de estupro, e da norma técnica: “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes”. O pedido foi atendido pelo atual ministro, general Eduardo Pazuello, em agosto deste ano.
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Em resposta à demanda de acesso à informação, a pasta assentiu ter sido provocada pelas entidades. “Quanto a justificativa e a fundamentação para a edição da referida norma, cabe esclarecer que o Ministério da Saúde foi provocado por meio de diversos ofícios da Defensoria Pública da União e de entidades da sociedade civil.”
Partidos entraram com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a portaria. Cerca de um mês depois da publicação da primeira versão, a pasta recuou e publicou uma segunda versão. O novo texto retira a obrigatoriedade de comunicação às autoridades policiais, trocando o termo “obrigatória” por “devem observar” e exclui a necessidade de perguntar à vítima sobre ver o desejo de ver o feto por ultrassom.
Solicitação do Instituto de Defesa da Vida e da Família (IDVF) para sustar portaria nº 1.508/2005:
PublicidadePedidos reiterados
Representada pelo defensor público federal Danilo de Almeida Martins, a associação católica Virgem de Guadalupe pressionou três gestões do Ministério da Saúde. Em fevereiro, ainda sob gestão de Luiz Henrique Mandetta, a entidade defendeu, via Defensoria Pública da União (DPU), a exigência do boletim de ocorrência, bem como a obrigatoriedade de o médico comunicar a autoridade competente da existência de um crime contra a liberdade sexual.
Em e-mail ao defensor, a presidente da associação, Mariângela Consoli de Oliveira, defendeu que a revogação da norma “se faz urgente, pois, evitará fraudes em relação a comunicação de estupros e consequentemente salvará vidas”.
Ela anexou uma notícia de um portal conservador intitulada “Ainda sem revogação, norma técnica de Dilma mantém abortos em alta na gestão de Henrique Mandetta”. O texto criticava Mandetta por suposta omissão e colocava que ele não teria feito “nenhuma questão de implementar” a chamada despetização em seu ministério. Despetização foi um nome dado pelo ex-ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni à exoneração de servidores em cargos de confiança ou funções gratificadas associados a gestões petistas.
Ao encaminhar o pedido ao Ministério da Saúde, o defensor público disse estar “ciente de que este Governo tem reiteradamente manifestado seu compromisso com a defesa da Vida”. No entanto, a solicitação não foi atendida. “Não é possível transigir, nesse momento, o peticionado, em função que a supressão de atos infralegais que dão curso ao que a lei determinou, pode significar hiato normativo gerador de barreiras de acesso ao cuidado, nas circunstâncias em que o Poder Legislativo já afirmou o interesse da coletividade brasileira”, diz documento do Departamento de Ações Programáticas Estratégias (Dapes) da pasta.
Em seguida, a associação reiterou o pedido no dia 29 de abril, quando o Ministério da Saúde já estava sob comando do médico Nelson Teich. “A importância do presente ofício se dá em razão do grupo vulnerável que se busca proteção – os nascituros – bem como pela ausência de resposta da gestão anterior deste Ministério.” Novamente, não houve acolhimento do pedido.
A terceira tentativa da associação foi feita em 3 de junho ao então ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello. Cerca de um mês depois, o gabinete do ministro encaminhou o ofício para o Departamento de Ações Estratégicas (Dapes).
Em 19 de agosto, o Instituto de Defesa da Vida e da Família (IDVF) entrou em cena com ofício aos gabinetes do presidente Jair Bolsonaro, do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, no qual pedia a revogação de normas técnicas e portarias acerca da realização do aborto e da violência sexual contra mulheres, crianças e adolescentes.
Em 27 de agosto, o novo diretor do Dapes, Antônio Rodrigues Braga Neto, que havia sido nomeado por Pazuello, informou que a matéria já se encontrava em estudo e escreveu que o departamento “é sensível e atento às pronúncias e manifestações da Sociedade civil”.
Naquela data, o posicionamento anterior do Dapes foi revertido e uma nova nota técnica favorável à demanda apresentada pelas entidades foi apresentada. Na justificativa, o departamento alegava que a revogação da portaria daria mais segurança jurídica aos médicos e ajudaria no combate à violência sexual. No dia seguinte, a nova portaria foi publicada no Diário Oficial da União (DOU).
Ao justificar a medida, o ministério frisou que não promove alterações no ordenamento jurídico, o que é de responsabilidade do Congresso Nacional. “O Ministério da Saúde não cria direitos ou obrigações, não inova no ordenamento jurídico. Apenas viabiliza o cumprimento das demais normas vigentes, orientando profissionais da saúde do Sistema Único de Saúde – SUS, como proceder para completo atingimento das leis em vigor, resguardando a segurança jurídica dos profissionais nos serviços de saúde.”
As entidades foram procuradas pela reportagem para comentar, mas até o momento não emitiram posicionamento. O espaço permanece aberto.
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