Está tramitando no Senado Federal uma sugestão legislativa (SUG 24/2020) que visa proibir a exibição de programas policiais “sensacionalistas” pela televisão aberta no período das 6h às 22h. A iniciativa foi proposta pelo jovem empresário Jonas Rossatto, por meio do portal e-Cidadania, e recebeu mais de 22 mil assinaturas no período de três meses.
A proposta está na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, ainda sob relatoria de Diego Tavares (PP-PB), que não está mais no exercício do cargo. Ele é suplente da senadora Daniella Ribeiro, que voltou ao cargo na sexta-feira (22). A proposta é alvo de uma enquete de apoio popular no site do Senado e conta com 282 votos a favor e 20 contra.
A iniciativa de Rossatto propõe que os programas policiais sejam classificados como inapropriados para menores de 16 anos por exibirem, por exemplo, conteúdos com reações violentas desproporcionais, estupro, pedofilia, crime de ódio e discriminação – pontos levantados no Guia Prático de Classificação Indicativa, do Ministério da Justiça. No entanto, de acordo com a lei, programas jornalísticos não estão sujeitos à Portaria de classificação indicativa.
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Opiniões de senadores
O senador Capitão Styvenson (Podemos – RN) manifestou respeito pelo projeto, que nasce do apelo da sociedade. Ele pontuou que acha mais pertinente controlar o conteúdo violento. “Deixá-lo com as imagens ofuscadas, por exemplo. Já que nem toda reportagem desses programas policiais são exposição de violência”, disse o senador.
Humberto Costa (PT – PE) se disse favorável à restrição e classificação de horários para esse tipo de programa. Segundo o parlamentar, “muitos deles naturalizam a violência do dia-a-dia, outros fazem, inclusive, apologia à violência”. Para ele, esses conteúdos passam a ideia que a violência explícita é algo banal. Dessa forma, parte das crianças ficam com medo e outra parte passa a considerar a agressividade como algo normal.
A iniciativa configura censura?
Para o autor da sugestão, há controvérsia se o conteúdo produzido é de fato jornalismo, comparando-os com programas de auditório. “Há muito comercial pago durante o programa, o que nos faz pensar se este é um conteúdo noticioso ou um programa de espetáculo, que se utiliza da vida e da morte das pessoas”.
Marina Pita, coordenadora executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, diz que é muito difícil ter uma definição do que é jornalismo, o que pode “elevar, em muito, a possibilidade de uso desta definição para censura”. Neste caso, ela ressalta que os próprios jornalistas devem ser mais ativos em aplicar o código de ética profissional nos casos de “abuso” para “evitar que este direito, de não estar sujeito a classificação indicativa, seja mal utilizado”.
O Intervozes é uma organização não governamental que trabalha, há mais de 10 anos, com as pautas do direito humano à comunicação no Brasil. Dessa maneira, Pita afirma que o caminho não seria a aplicação da classificação indicativa, pois “mesmo em outro horário, as muitas violações de direitos humanos ainda seriam inaceitáveis”.
“Ou seja, não basta que o horário mude. É preciso impedir que a dignidade humana, a privacidade e o princípio da inocência sejam desrespeitados, dentre tantos outros regramentos sobre direitos das crianças e humanos”, argumenta a ativista.
Violação dos Direitos Humanos
Estudos comprovam que os chamados programas policialescos violam cotidianamente uma série de direitos humanos. A pesquisa Violações de Direitos na Mídia Brasileira, publicada em 2020 pela ANDI – Comunicação e Direitos em parceira com o Intervozes, a Artigo 19 e a Procuradoria Federal de Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (PFDC/MPF) identificou 4500 violações em 30 dias de monitoramento de programas televisivos.
As principais narrativas encontradas foram: exposição indevida de pessoas vítimas de violência ou suspeitas de haver cometido um crime; desrespeito à hipótese de inocência, violação do direito ao silêncio e exposição indevida de familiares de vítimas ou suspeitos.
A pesquisa demonstra também que o fenômeno é marcado por raça e por classe: a maior parte das narrativas viola direitos de pessoas negras, vulnerabilizadas. Também é marcada por idade: jovens, crianças e adolescentes constituem mais da metade dos indivíduos que têm seus direitos violados. Em relação ao gênero, a maioria é homem. Porém, o percentual de mulheres aumenta quando analisados os direitos de familiares, tanto de suspeitos quanto de vítimas.
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Medidas semelhantes em outros países
Após o assassinato de George Floyd por policiais em maio de 2020, caso que repercutiu nos programas de TV e plataformas digitais por todo o mundo. O movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) inflamou os Estados Unidos reividicando o direito à vida. O fato fez com que diversos programas e séries policiais fossem cancelados no país.
Uma delas foi a série COPS, exibida pela emissora Paramount. No ar há 33 anos, a produção acompanhava a rotina de trabalho de policiais, mostrando abordagens reais. Foi indicada a diversos prêmios, como o Emmy, e inspirou programas do gênero em todos os continentes. No Brasil, um exemplo é o Polícia 24h, exibido pela Band.
Mas o Brasil tem, também, suas próprias referências. Um dos pioneiros no país, o jornalista Gil Gomes, começou a trabalhar com programas policiais ao vivo no fim de 1960. Hoje, já são mais de 20 produções policialescas em todo território nacional.
Jonas Rossatto baseou-se na legislação uruguaia ao escrever a proposta legislativa. O empresário trabalha diretamente com tecnologias e manufaturas no ramo da Cannabis e mudou-se para o Uruguai após a descriminalização da maconha no país. De volta ao Brasil, para ficar com a família no período de pandemia, ele percebeu que “mesmo trocando de canal, se consome apenas programas policiais sensacionalistas na TV brasileira”.
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Thaís Rodrigues é repórter do Programa de Diversidade nas Redações realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative.