Thaynara Melo e Bruno Paixão*
O covid-19 pegou carona na bagagem de mão da parcela mais rica da população. Isso, claro, não é um atestado de culpa às pessoas que, por motivo ou outro, tem condições de sair do país. É apenas uma constatação para exemplificar a discrepância do impacto do vírus nas diferentes estratificações
sociais.
> As últimas notícias da pandemia de covid-19
Podemos dizer que o cenário não começa agressivo, em parte pela condição social dos contaminados e em parte por sorte. No entanto, essa história começa a mudar quando a transmissão silenciosa do vírus passa a ser comunitária, ou seja, não rastreada. O vírus não respeita as barreiras de idade,
condição de saúde, contas bancárias cheias e casas com estruturas, e assim, aos poucos, passa a alcançar aqueles que já sofrem diariamente por outro problema: a pandemia invisível da pobreza.
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A primeira morte no Rio de Janeiro por coronavírus retrata o impacto de quando o vírus e a pobreza se cruzam. Uma doméstica morreu no dia 17 de março no Hospital Municipal Luiz Gonzaga da cidade de Miguel Pereira (RJ). A senhora de 63 anos, portadora de diabetes e hipertensão, seguia limpando e
cozinhando em uma casa no Leblon (RJ) em meio às notícias da chegada do vírus no Brasil. O que ela não sabia era que sua patroa fora contaminada pelo covid-19 nas últimas férias que passou na Itália. Após contaminada, teve seu quadro rapidamente agravado, deu entrada no hospital no dia 16 de março e faleceu no dia seguinte. A falta de informação básica e infraestrutura torna a letalidade do vírus mais próxima do pobre no Brasil.
Estamos falando de uma população que não pode fazer home office porque sua profissão exige limpar casas, carregar sacos de cimentos, dirigir, sentar em um balcão na frente de uma loja ou rodar o centro vendendo latinhas. Para essa parcela da população, isolar-se do público sem suporte financeiro do estado, significa não ter renda, não ter comida.
PublicidadeIsolar-se significa ficar em casa sem, provavelmente, ter condições básicas de higiene já que
segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS (2017) um total de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água encanada e 48% da população não possui coleta de esgoto. Estamos falando de uma população que é incapaz de se prevenir lavando as mãos com água e sabão por falta de acesso à água que deveria ser um direito universal.
Dessa maneira e de outras formas cruéis, o coronavírus começa a se espalhar no metrô, no ônibus e chega às casas superlotadas da periferia sem condições de quarentenas “saudáveis”. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) de 2018 do IBGE retrata bem as casas
superlotadas no Brasil quando apresenta a informação que 11,6 bilhões de brasileiros (5,6% da população) vivem em imóveis com mais de três moradores por dormitório, tornando-se assim casas com adensamento excessivo.
Nesse contexto, o Governo precisa estar pronto para agir para preservar vidas. O isolamento é o passo essencial e emergencial para desacelerar a curva de contaminação. Porém, para ser viável, precisamos ter olhos sensíveis à condição de pobreza da nossa população garantindo sua renda mensal.
A economia só funciona porque existem pessoas produzindo, pessoas vendendo e pessoas consumindo, sem pessoas não existe economia. Precisamos injetar dinheiro para preservar vidas e assim a roda da economia aos poucos voltará a girar. Esse é o entendimento dos países onde a crise do
coronavírus chegou antes do Brasil. Alguns exemplos são Portugal que está oferecendo o benefício de até 438,81 euros (R$ 2,406,30) por mês para sua população; Reino Unido onde o Governo bancará os custos do afastamento de trabalhadores para proteger o empregador da falência e o empregado da
miséria; e os Estados Unidos da América que está enviando cheques de 1.000 dólares (R$ 5.002) para os trabalhadores. Todos são valores que dentro das suas respectivas realidades viabilizam a segurança familiar.
Qual a grande diferença entre esses países e o Brasil? A desigualdade. Muitos que chegaram a esse ponto do texto vão dizer que é fácil para América do Norte ou Europa tomarem essas medidas já que possuem uma economia mais estável ou uma população menor e menos pobre. Esse porém não é uma
justificativa para ficarmos paralisados, a desigualdade e pobreza que assolam o Brasil é resultado de gerações que fecharam seus olhos. Investimos em soluções lentas e tardias para combater a miséria e assim a parcela da população que precisa do auxílio do estado é gigante. Agora, mais do que nunca, cabe aos nossos governantes identificar uma saída para que o ônus da crise econômica não seja jogado nas costas dos trabalhadores informais, desempregados, empregados e empregadores.
O Estado precisa tomar medidas energéticas, realistas e não abdicar de participar das soluções dos
problemas criados pela pandemia. Para lidar com a crise o Governo Federal apresentou ao Congresso
Nacional a proposta que tem sido apelidada de “voucher coronavírus”, a qual ofereceria o valor de 200 reais por mês para trabalhadores informais que somam 24 milhões de brasileiros no cenário atual. Essa proposta descabida que oferecia um valor inviável para sustentação de uma família foi renegociada com a oposição e chegou ao valor de 600 reais na Câmara Federal e ainda falta ser aprovada pelo Senado Federal.
E é justamente no Senado que se encontra a proposta com maior consistência para enfrentar a crise do coronavírus sem intensificar a pandemia da pobreza. O senador Randolfe Rodrigues (REDE/AP) protocolou um projeto de lei, que altera a Lei n. 10.835/2004, instituindo a renda básica de cidadania
emergencial em casos de epidemias e pandemias.
O benefício máximo por família previsto no citado projeto de lei é de R$1.500, sendo que aqueles que já tem acesso ao Bolsa Família receberão o suplemento. Além da diferença de valores da proposta do Governo Federal e da Câmara Federal, cumpre destacar que o projeto apresentado também amplia o número de atendidos já que avalia que, em consequência da quarentena, os custos como conta de luz, água e alimentação aumentarão significativamente no próximo período e muitas famílias brasileiras atendidas pelo Bolsa Família ou outro benefício do CadÚnico já vivem no limite do seu orçamento. A equipe do Senador Randolfe estima que o programa custaria até R$ 23 bilhões por mês, cerca de 75% do valor destinado anualmente ao Bolsa Família.
Sabemos que independentemente de qualquer crise, os números são uma questão de matemática, e se de um lado somamos, de outro é necessário subtrair. Então de onde tirar o dinheiro para viabilizar a renda única emergencial? No Brasil não falta dinheiro e sim um acordo de como esse dinheiro deve ser priorizado.
As opções são inúmeras como iniciar a tão famosa e adiada taxação de grandes fortunas a qual foi apresentada através de um PL pelo Senador Plínio Valério (PSDB-AM) que visa taxar quem tem patrimônio líquido superior a R$22,8 milhões, com alíquotas entre 0,5% e 1%. Ou quem sabe agora que o STF liberou regra flexível para gastos relacionados ao Estado de calamidade pública, o gasto de 3.06% do PIB correspondentes a proposta de implementação de renda básica emergencial no valor de 23 bilhões seja considerado palpável para acudir a população mais pobre do país. Como podem ver as soluções são inúmeras desde que a prioridade seja a vida e dignidade do trabalhador brasileiro.
Ainda pensando em evitar o caos não basta a criação de distribuição de dinheiro de forma emergencial e mais leitos de UTIs, precisamos de medidas estratégicas que permitam ao poder público olhar e combater a miséria de perto.
Estamos sugerindo a criação de mapas da pobreza para se despejar recursos diretos ou através de benefícios, como ampliação de contratos de ônibus, redução de impostos sobre consumo, adição de itens de higiene nas cestas básicas, hospitais de campanha nas regiões onde existe alta demanda do SUS e aglomeração, alocar recursos aditivo em famílias que possuem crianças e PNEs, criação de um programa nacional de moradia e emprego para população em situação de rua. Essas medidas podem não só reduzir o impacto do coronavírus como se tornar permanente e adentrar as raízes da pobreza para enfraquecê-las.
A pandemia do coronavírus ligou novamente o alerta vermelho que é viver em meio a tanta desigualdade. Por hora, temos uma onda de mortes que chegarão por conta do covid-19, porém, as mortes por dengue, sarampo, bala perdida e falta de saneamento básico vão seguir persistindo nas regiões mais pobres do país. Podemos e devemos usar essa crise para enfrentar não só o
covid-19, mas a pobreza, de modo que saiamos mais fortes e menos desiguais.
*Bruno Paixão é graduado em Análise e Desenvolvimento de Sistemas – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – DF, Pós-Graduação em Ciência de Dados, Mestrado Ciências de Dados (UnB), Mestrando em Economia (UCB). Ex-Subsecretário de Segurança Alimentar do DF. Defensor da inovação no serviço público e apaixonado por Machine Learning.
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