No mês passado, Jair Bolsonaro vetou 22 pontos do Projeto de Lei 1142/20, que previa uma série de medidas de proteção às populações tradicionais durante a pandemia de covid-19. Entre os pontos vetados pelo presidente estavam a garantia do fornecimento de água, o fornecimento gratuito de materiais de higiene, limpeza, desinfecção, além do fornecimento de verba emergencial para garantir o acesso à saúde e internet para os povos indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais.
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Localizada na região do semiárido baiano, há 40 quilômetros das margens do Rio São Francisco, a comunidade Quilombola Sítio Lagoinha, tem sentindo as consequências da crise e, também dos vetos presidenciais. José Henrique Santos Souza, presidente da associação dos Quilombolas do Sítio Lagoinha explica que durante a pandemia aumentaram as dificuldades do fornecimento de água feito por caminhões pipa nas regiões mais afastadas.
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Além disso, diz, o ensino remoto não pôde ser viabilizado pela falta de estrutura e os estudantes permanecem sem aulas. “Nem de forma remota eles estão estudando, foi um ano sem acesso à escola”, explica o presidente da associação.
Segundo a representante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Givânia Maria da Silva, a falta de acesso à serviços básicos é comum nessas regiões. Ela explica que o Nordeste e o estado de Minas Gerais somam cerca de 60% das comunidades quilombolas do país, a maioria delas vinculadas à municípios de pequeno porte e com pouca estrutura. Isso se soma à falta de investimentos direcionados para as populações, reafirmando a suas situações de vulnerabilidade.
“A pandemia chega em comunidades que têm forte ausência de políticas públicas, saúde, infraestrutura, saneamento e água e faz com que essas comunidades sejam mais afetadas e não possam cumprir os protocolos recomendados. Outras, ainda em função da questão da água, não têm produção e também são dependentes da chuva ou das verbas ainda não regularizadas”, aponta Givânia.
PublicidadeJosé Henrique Santos explica que desde o início da pandemia a comunidade vem fazendo isolamento social, as atividades que estavam sendo realizadas pela associação precisaram ser suspensas e que a preocupação maior tem sido em proteger os idosos e evitar que o vírus chegue na comunidade. Ainda não foram registrados casos de infecção de coronavírus, mas ele lembra que para tratar casos graves, o atendimento mais próximo é em um posto de saúde na região de Casanova há 40 quilômetros do local. Ele aponta que existem na região comunidades ainda mais isoladas.
O líder comunitário explica que depois das chuvas, a região entra em período de estiagem e com os reservatórios no limite, a tendência é piorar o acesso à água de qualidade. “A água é fundamental para higienização e para sobrevivência”, ressalta o líder.
Para Givânia, a falta de água é ainda mais grave durante a pandemia. “O desafio é cumprir todos os protocolos recomendados pelas autoridades de saúde quando em muitas delas [comunidades] faltam coisas básicas, são muito poucas comunidades que recebem serviços de saúde. A vida não se resume à pandemia, há outras necessidades”, complementa.
Racismo
Para os líderes a pandemia jogou ainda mais tinta na questão do racismo. “Veio o coronavírus e a gente viu como as populações negra de remanescentes quilombola rural e urbana, e a população negra em si, continuam vulneráveis. Com essa pandemia, a gente acompanha nos grupos de WhatsApp a realidade das outras comunidades, em outras cidades na Bahia e no Brasil todo. A gente sente a dificuldade e sente a vulnerabilidade. É como o racismo e o racismo estrutural nos afetam”, afirma Henrique Santos.
Para Givânia, é preciso que o Brasil assuma que é uma “sociedade racista” e que a luta antirracista “não é somente dos negros e dos índios, mas é inclusive dos brancos”. O pensamento social brasileiro, aponta, mantém aprisionados negros e indígenas a temas do passado. “É como se a nossa identidade quilombola e indígena estivesse amarrada cinco séculos atrás e a gente não conseguisse sair desse modelo desse índio inventado pelo colonizador e desse quilombola inventado pelo escravocrata. A imagem desse sujeito primitivo é uma forma de nos tratar como selvagens. E assim, como selvagens, nós não precisamos acessar políticas públicas”, vaticina.
“Eu não preciso deixar de ser quilombola para ter acesso à internet, a internet não é o que vai tirar a minha identidade. Agora, se tirar o meu território eu não vou deixar de ser quilombola, mas vou perder muita coisa”, conclui.
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