“Nosso medo mais profundo não é sermos inadequados. Nosso medo mais profundo é de sermos poderosos além da medida. É nossa luz, não nossa escuridão o que mais assusta.”
Nelson Mandela
Diante do controle moralizante da sociedade que permite classificar e punir, indagamos: quem somos nós? Qual é a verdadeira participação do povo negro na formação da nação brasileira? Qual é o cognitivo da sociedade em relação ao afrodescendente a nossa cultura, nossa história e religião? Quem vai contar a verdadeira história que nos liberta?
O racismo não tem a ver com a questão das diferenças. O que leva ao racismo é o medo que o diferente se torne parecido, ameaçando identidades e transgredindo nos espaços da suposta democracia racial. Dizendo de outra forma, o que assusta a sociedade branca é o negro poder mostrar-se com todo seu potencial de ser.
Sequestrados do continente africano, negras e negros foram mandados para as plantações e para as minas. Transformados em máquinas humanas serviram de base para a construção panóptica da sociedade brasileira.
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Entendendo como Foucault, a formação da sociedade é disciplinar e está ligada a processos históricos que legitimam o racismo estrutural. Com a vigilância das leis, nossos ancestrais foram proibidos de frequentar a escola e possuir terras. Logo o antagonismo foi estabelecido no sentido de tornar o afrodescendente intencionalmente inferior.
É possível que o ponto fundamental de tudo fosse a consciência da adulteração de uma cultura diferenciada e de um conhecimento exemplar que não se opunha à ciência do colonizador. A ideia se mantem, vigiar é preciso e qualquer mudança pode ser fatal se o negro ficar parecido com o branco
Cada momento histórico, no entanto, revela, no seu interior, referência para manutenção dos lugares enquanto a realidade total vai mudando. As referências, por sua vez, estão contidas nos processos econômicos, jurídicos, políticos e científicos que regulam tanto a educação como o direito que ganham realidade e estratégias capazes de manter a “ordenação das multiplicidades humanas”, legitimando caminhos estabelecidos para manter encaixado cada um no seu lugar. Não há nada de excepcional e qualquer sistema de poder se coloca com o mesmo problema. O que muda, no caso da sociedade brasileira, é o modo como foram construídos a aculturação, o racismo estrutural e seus efeitos.
Milhares de etnias foram incorporadas à macroeconomia lusitana como um vasto “proletariado externo” nas condições mais espoliativas para a expansão do domínio europeu nas Américas. Em verdade, o processo não tem sido simples, diante da luta do povo negro pela manutenção dos seus valores ontológicos, dos seus costumes e da sua prática religiosa, isto quando não preferiam fugir arriscando-se a morte pela liberdade.
Histórias de luta e de liberdade, no entanto, têm sido alinhavadas pela narrativa oficial num contínuo processo de exclusão. Desconhecer esse mecanismo seria ficar na periferia dos eventos, seria ignorar a política das nações europeias e as políticas econômicas que se articularam organicamente com o corpo da doutrina econômica que se desenvolveu e fez a expansão ultramarina acontecer. Também não pode ser desprezado o papel da religião oficial, da igreja que se tornou o maior aliado do sistema escravagista monopolizador de terras. Nesse sentido, o grande feito do sistema foi manter as relações políticas e econômicas do capitalismo de tal modo que pudesse garantir a reprodução da sociedade. Daí que, para Milton Santos, “os atores hegemônicos da vida econômica, social e política podem escolher os melhores lugares para sua atuação e, em consequência, a localização dos demais atores é condenado a ser residual.”
Isso tem ressonância na reprodução social da vida na fábrica, na escola, na igreja, no quartel e em outras esferas da sociedade produzindo, ainda com mais zelo, as funções de negros e funções de branco. É preciso manter o negro à distância custe o que custar. É preciso barrar o negro. Parecido é a palavra-chave.
Este é o núcleo do tenso universo social no qual negro aparece como um problema para si mesmo e para o branco. Todos os cuidados são tomados para que não haja mistura. Tanto no Brasil como em outras nações americanas, o elemento desagregador que provoca as tensões e consequentes desigualdades é o mesmo: o racismo e as múltiplas exclusões que calcificam a sociedade.
Paralelamente às experiências negativas, cabem sinais de luta e esperança por políticas públicas e reparadoras. Cabem ações que correspondam a agendas efetivas contra as desigualdades sociorraciais. As cotas, a consciência histórica e as lutas da sociedade civil são atos impeditivos de uma implosão social além de contribuir para fazer pulsar um novo tempo parido de um fórceps, mas pode ser um caminho ou pelo menos uma trilha.
Finalizando esta prosa, aproveito para me apresentar embora tardiamente. Eu sou Vanda Machado, mulher preta, filha de Oxum e Ogun, Iya Egbé do Ilê Axé Opo Afonjá na Bahia. A minha fala é menos acadêmica. Eu trago a fala das encruzilhadas. Fala que representa toda a diversidade, onde tudo se organiza e desorganiza. Falo do lugar onde todas as coisas se relacionam e se complementam. Falo do lugar terreiro onde milhares de etnias se re-uniram como família ancestral única. Nas encruzilhadas, estamos nos acotovelando, mas estamos juntos.
Hoje o que parece subserviência também pode ser classificado como resistência. Já se foi o tempo em que o negro participava de cortejos como peça que justificava a situação econômica do seu senhor. Hoje a nossa presença em qualquer lugar público ou privado significa viver a nossa alteridade. E mesmo vigiados, o nosso lugar por escolha é a encruzilhada onde todos os caminhos se cruzam deixando estradas e passagens livres como linhas de fuga para a igualdade sociorracial.
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