Sairá distorcida a imagem de ontem traduzida por olhos de hoje. Sairá borrado e sem foco o mundo de hoje se visto com olhos de ontem. Os historiadores sabem quanto é importante ao cientista se colocar no tempo dos acontecimentos para perceber sua verdade.
Jair Bolsonaro não teria qualquer chance de sucesso eleitoral se tivesse surgido nos anos 70/80. A ditadura estava fresca nos olhos de quem a sofreu e se perdeu em sua escuridão. Os relatos das censuras, das torturas, das agruras e amarguras ardiam nos olhos de quem viveu aqueles tempos. Era o tempo em que o povo andava “falando de lado e olhando pro chão”, como diz a canção do Chico.
Daí por que são absolutamente distorcidas as análises que apontam para um desgaste de Bolsonaro após as revelações da participação direta de ditadores como Geisel no assassinato seletivo de opositores à ditadura. Os simpatizantes do coronel Bolsonaro olham a história pelos olhos de hoje, portanto não têm a mínima ideia da dimensão das atrocidades cometidas nos tempos de ódio. O olhar com que vislumbram o que aconteceu apenas lhes confirma o relato simplificado segundo o qual, naquele tempo, reinava a ordem e o progresso. Os custos dessa “ordem” e desse “progresso” são estrategicamente escamoteados. E os “vagabundos agitadores da esquerda”, quando eram torturados ou mortos, na tradução feita hoje, apenas recebiam o “tratamento merecido”.
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Cada tempo com seus olhos
Os olhos e os ouvidos de hoje, por não se marejarem com as imagens nem se angustiarem com os gritos das vítimas de ontem, não têm condições de dimensionar as atrocidades dos agentes da ditadura. Essa é a razão de a realidade daqueles tempos duros terminar relativizada por uma visão complacente e reducionista, como a que se exprime por meio de frases-slogans do tipo “todo comunista é assassino”.
Houve analistas que previram impacto forte das revelações dos documentos da CIA na candidatura Bolsonaro. Esqueceram-se de que o humor do eleitor bolsonarista não se altera com esse tipo de relato, antes pelo contrário: a exposição pública desses fatos apenas reafirma o “acerto” das atitudes dos generais-ditadores e de seus comandados. Tanto é assim que, mesmo quando o próprio Bolsonaro externa declarações misóginas, homofóbicas ou racistas, as pesquisas revelam que seus apoiadores não arredam um centímetro na aprovação de tudo o que diz o candidato à sucessão de Temer. Eles o apoiam – justamente por concordar com ele! Concordância que se estende a temas tão ou mais delicados como, por exemplo, a tortura. Duvida? Vá às redes sociais e dê uma olhadinha no que os bolsonaristas escreveram quando ele, na votação do impeachment de Dilma, manifestou sua simpatia pelo coronel-torturador Brilhante Ulstra. Choveram elogios e aplausos a Bolsonaro pela coragem em fazer uma homenagem pública ao “herói” das catacumbas do regime. Exatamente ali sua candidatura ligou os motores e entrou na pista de decolagem.
Para os historiadores, é impensável cogitar-se da possibilidade de se fazer uma revisão na condenação a que figuras execráveis como Brilhante Ulstra foram relegadas. Já para os bolsonaristas alinhados à neoextrema direita, Ulstra apenas fez, com os aplausos do próprio Bolsonaro, o “serviço” que dele se esperava.
Quem apoia Bolsonaro pensa como ele.
Olhar o passado com olhos de hoje tem acarretado equívocos monumentais como a negação do Holocausto, para ficar num exemplo clássico. Atribuir à divulgação dos documentos da CIA um poder capaz de solapar a sustentação dada pelos seguidores/eleitores bolsonaristas a seu líder é outro desses gigantescos enganos. Em vez de diminuí-lo, fortalece-o. Até aqui, os observadores políticos se recusam a reconhecer a existência de uma extrema direita forte no Brasil. Pois é bom irem se acostumando com a ideia. Se no passado ela existia, mas era restrita a grupos pontuais que evitavam se expor, hoje ela é expressiva, ostensiva e ocupa um terço do eleitorado. Se quiser ter uma ideia “visual” do tamanho dela, olhe em torno: de cada três pessoas que você está vendo ao seu redor, pelo menos uma é homofóbica, misógina, racista e apoia a tortura como método lícito em interrogatórios. Não sou eu quem está dizendo isso: são as pesquisas de intenção de voto. Quem apoia Bolsonaro pensa como ele.