A volúpia de dedurar, buscar refúgio no coletivo e apontar o dedo virou marca registrada dos anos zero-zero e – parece – tem tudo para se consolidar ferozmente nos próximos anos. Sobretudo no que se refere às questões de sexo, raça e religião. Eu não me excluo da deduragem, embora dispense o refúgio no coletivo (porque não sou nazista). Sou apenas mais um animal na floresta. A diferença é que aponto o dedo para outras paragens, digamos assim. E o faço, em primeiro lugar, porque a imposição de qualquer cercadinho invariavelmente subtrai meu riso, e se não tiver humor – eu penso – navegar não é preciso, é naufrágio.
Apontar o dedo noutras direções não é tão fácil e não é menos comprometedor. Só pelo fato de saber que no final do arco-íris Deus não vai dar lambuja pra ninguém, só porque você imagina que é malandro e fatalmente vai se divertir e debochar de tudo e de todos, bem, isso não é garantia de que, no final das contas, você sairá menos chamuscado ou vai ser um cara mais livre do que aqueles que tiveram a proteção dos cercadinhos e do lugar-comum. Engano.
Mirar, apontar e atirar. Não faço outra coisa desde que me conheço por gente. Minha primeira vítima foi o ursinho da lata de talco: apontar o dedo é o meu crack, é o vício que me mantém vivo, é a droga que me leva pro fundo do poço, prum lugar coberto de heras e umidade de onde garimpo as pedras reluzentes da vingança e do troco bem-dado.
Até uma hora que você vacila, e aí, merrrmão, você é que vai ser enquadrado na alça-de-mira de seus inimigos. Pode ter certeza que eles estarão lá babando quando você abaixar um milímetro da guarda. Eles é que vão apontar o dedo em sua direção, pedirão sua cabeça e destruirão sua reputação. Eu mesmo já fui decapitado várias vezes. Então poupo o trabalho do adversário. Aprendi a me matar para me manter vivo. Não recomendo que façam isso em casa. De qualquer modo, só tenho a agradecer àqueles que me retribuem o ódio na mesma moeda. Se não fosse esse retorno, eu não teria a oportunidade de enxergar meus exageros. A palavra-chave é esta: exagero.
Pois bem, esse preâmbulo-lero-lero é pra falar de Gerald Thomas. Quem diria, Gerald Thomas – depois de zoar Fernandona e Fernandinha Montenegro – foi parar no Irajá, digo, no Pânico. Desde sempre antipatizei com esse sujeito, nem tanto por ele, mas pela maneira afetada como os áulicos pronunciam seu nome: meio que tracionado num arado fonético Géééérald. Antes de acabar no “dê mudo” pronunciado como marca de sofisticação e inteligência, o “e” da primeira sílaba é levado às abóbadas celestes como se fosse um “é”… ah, isso sempre foi veneno para mim.
Dona Fernanda Torres e Fernandinha geniais, a dentuça filha do Ziraldo e o cordão de puxa-saco ilustrados, todos em uníssono cacarejando Géééérald, Gééééérald. Como se o Géééérald fosse o esperma sagrado do Santo Graal via nossa goela abaixo, puta porre dos infernos.
Mas eis que o mundo gira e a Lusitana roda. Depois de quase trinta anos da proclamação diuturna da genialidade do Géééérald, eu jamais poderia imaginar que um programa escroto como o Pânico, somado à histeria provocada pelas redes sociais, as reverberações e o posterior “linchamento do bem” que se estendeu lamentavelmente até o mundo das tirinhas, pudesse realocar as coisas em seus devidos lugares. Viva a Lusitana!
PublicidadeTalvez o Geraldo seja um cara legal.
Do Géééérald pro Laerte. O travesti da revista Piauí, mimo de dez entre dez intelectuais, até eu mesmo, antes de ele ficar chato pra caralho e se engajar no cercadinho dos crossdresser da terceira idade, já paguei – e continuo pagando, vá lá – pau pra ele, juro que pensei que o Laerte tava tirando uma da cara dos otários. Mas, depois da tira que ele publicou na Folha de S. Paulo, no último dia 15 de abril, percebi que subestimei a burrice do Laerte ao superestimar sua capacidade de me enganar, ele pisou feio na bola. Mas continua sendo o Laerte, apesar de ter dado forma ao “linchamento do bem”, apesar de ter reverberado a voz da boçalidade acusatória que campeou nas redes sociais a partir de uma imagem-armadilha produzida fora do contexto.
Isso me incomoda muito, esse “linchamento do bem”, a patrulha que não dá trégua e acusa e condena sem fazer distinção apenas porque se sente ameaçada em sua pureza quando, na verdade, ela mesma – na prática – se torna instrumento efetivo do mal que atribui ao adversário. Não vejo a menor graça. Sobretudo quando o talento de um cara genial como o Laerte é subtraído por essa meleca. O nome disso? Nazismo.
Vamos à tirinha.
Na primeira seqüência, o advogado diz: “Meu cliente não cometeu estupro, era só um gesto teatral”. Na segunda, afirma: “Meu cliente não cometeu estupro, era apenas uma piada”. E, na terceira, aproximando Gerald Thomas da figura infame de Paulo Maluf, Laerte conclui: “Meu cliente cometeu estupro… mas não matou”.
Pra começo de conversa, usar, ou melhor, apelar para a figura do advogado escroto que incorporaria o asco do “cliente” a partir de uma conjunção de interesses maléficos é um baita lugar-comum. Todo mundo está careca de saber que a categoria dos advogados sugere mais repulsa do que qualquer outra coisa, mais até do que o programa Pânico. Usar esse artifício para fazer piada-engajada é tão nefasto quanto, sei lá, associar o afro-reggae a um zoológico. Acusar e/ou sugerir que fulano é estuprador a partir de uma imagem descontextualizada é algo que devia dar cadeia. A Lei 12.015/2009 diz que estupro é “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Como é que o Laerte escorrega numa casca de banana dessas? Alguém precisaria lembrá-lo que o fato de ele ter se transformado no fio terra-crossdresser dos intelectuais descolados (no sentido de isolar o mal malafaia que cai dos céus…) não lhe confere passaporte, tampouco livre acesso para bordejar acima do bem e do mal, menas Laerte, menas. Ninguém constrangeu ninguém. Nem é o caso de falar de assédio, mas de conluio.
Basta conferir o vídeo na íntegra (ou a versão editada pelo Pânico, tanto faz ). A suposta “vítima de estupro” não apenas anuiu e foi coautora da imagem veiculada como também – logo depois do “violência” – empinou a bunda para o diretor de teatro encoxá-la com vontade. Ah, vale lembrar que Gerald Thomas avançou na direção da genitália do repórter também, e ninguém se ofendeu com a mão boba do diretor talvez porque o fulano, branco, heterossexual, residente provavelmente em Pinheiros ou Perdizes, não representasse nenhuma minoria ameaçada de “desqualificação”.
Eu não sei se trata de hipocrisia ou burrice. Estupro é que não é. O nome disso, Laerte, é circo, é baixaria, é business, é consenso.
O cara que salva – a palavra é essa mesmo “salva” – o mundo com seu humor, de uma hora pra outra, se transforma num inquisidor medieval e condena a outra parte baseado em superstições. Laerte caiu feito um pato na armadilha do suposto inimigo porque – tese minha – existe uma fixação justiceira que o cega e diz de antemão e preconceituosamente que toda e qualquer piada que trata de minorias é desqualificadora pela própria natureza (superstição). E o Pânico, logo o grotesco programa comandado pelo ensaboado Emilio Zurita, passou a perna no Laerte que, agora, além de refém do próprio corpo e de sua condição sexual em riste, justo Laerte Coutinho, acabou se transformando numa espécie de Torquemada da piada alheia.
Eu lamento por tudo isso. Queria outra piada de volta, aquele tipo de humor sem patrulha, sem melindres e sem escaramuças que, no lugar de justiçar e ser porta-estandarte de determinado grupo, desqualifica o ser humano em geral (estou falando da espécie homo-sapiens), porque, a meu ver, não existe outra maneira de encarar o ridículo e a fragilidade da condição humana senão insurgindo-se contra o próprio espelho. Não existe outra maneira de encarar o semelhante e a si mesmo senão… como piada.
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