O ano em que a Terra não parou: eis 2020. E termina nos trazendo a sensação de que nunca fomos tão massacrados. É um ano em que foi escancarado, sem máscaras (especialmente sem máscaras) ou pudores, o projeto colonial brasileiro de mortes e terra arrasada.
Em paralelo, é possível afirmar que a guerra contra as nossas vidas nunca foi tão documentada. Durante as quase findas 52 semanas do ano estivemos diante de vídeos que expuseram esse projeto, desde pronunciamentos oficiais que fizeram e fazem chacota do vírus às imagens de homens negros assassinados (seja em linchamento dentro de um supermercado ou ao passar em uma moto, a caminho de casa).
O que é preciso para uma distopia? Estamos diante da vida com benesses nunca antes imaginadas ou, pelo contrário, mergulhados em um rio de lama e sangue, produzido pelo capitalismo predatório, pela banalidade da vida e normalização da violência? Para a afirmação-manifesto contemporânea, sobre a importância das vidas negras, já houve momento utópico? O questionamento tem sua função porque ele também é uma busca sobre por onde caminha a nossa imaginação e se há futuro.
Na quinquagésima semana desse ano me vi surpreendida pela notícia de que o Exército Francês contratou ficcionistas para imaginar as guerras do futuro. Escritores brasileiros debateram a técnica futurista, alguns afirmando que esta não era em si inovadora, outros explorando brevemente suas perspectivas sobre o amanhã.
Intelectuais negros, a seu turno, também vem falando sobre o amanhã por meio de um conceito/corrente intitulado “afrofuturismo” – é claro, sem convite feito por nenhum exército. Para mim, a melhor definição desse conceito veio de uma socióloga, Nátaly Neris, que disse certa vez que “afrotuturismo é a ideia radical de que pessoas negras existem no futuro.”
Em algum momento esse futuro foi hoje. Talvez a técnica de imaginar futuros utópicos seja a tecnologia ancestral negra: que sempre denunciou que não era possível, com as práticas institucionalizadas de terrorismo desenvolvidas pela colonialidade, um futuro para todos. Há um sistema-mundo das navegações que trouxe destruição para a natureza, para povos e culturas e que, ao desembarcar na costa do Atlântico, chamou de desenvolvimento e civilização o que era destruição e barbárie.
Em contraponto, os povos originários dessa terra compreenderam no primeiro século de exploração que esses navegadores queriam guerra e resistiram para poder hoje contar sobre ela e sobre a cosmovisão de mundo que tinham e têm. Era possível fazer de outra forma, retardando ou impedindo o fim do mundo, como Ailton Krenak nos contou.
E por todos os meios necessários, aqueles que foram chamados de negros e indígenas buscaram subverter a dominação, tanto pela defesa da língua às disputas por paridade de armas, contra o futuro que a colonialidade os delegou: a morte. E inverter a lógica de dominação colonial não tinha o objetivo de “conquistar”, termo vil daqueles que vieram expropriar a vida, a terra e os sonhos. Inverter a dominação mais se alinha a reintegração de posse, daquilo que nunca foi propriedade de ninguém, mas poderia ser utilizado por todos, se divido: terra e sonhos.
A escassez é parte desse projeto. A velha história de que não tem para todos é como os brancos contaram ao mundo o seu projeto de vida anticomunitária, é a história do mundo colonial por eles criado. A contra narrativa arguta, que apresenta técnicas de divisão, de cuidado coletivo, por sua vez, é nossa, daqueles que estão sendo massacrados por séculos.
Esse ano que termina demandando recolhimento, pois há um vírus mortal da porta para fora, também pode ser capaz de trazer perspectivas outras sobre um mundo (melhor e) possível. O afrofuturo é decolonial, porque todas as vidas só importam no fim da hierarquização de algumas sobre outras. É o convite para o utópico, que ainda não se viveu, mas que já foi imaginado. Caminha por entre uma democracia paritária, pela imposição da redistribuição de renda, pela imposição do cuidado com a terra e com a natureza, pela autonomia dos povos originários, pela vida das crianças livres de violência e que é responsabilidade de todos.
Embora sem um convite institucional, como o mencionado do Exército Francês, acredito ser urgente lembrar que podemos imaginar um mundo fora dos marcos já vistos. O afrofuturo é um termo que circula por entre jovens, como conceito estético, literário e cultural, mas também político. O Afrofuturo dialoga com o Emicida, sabendo que tudo é pra ontem e que o mestre de cerimônia é um griô contemporâneo e um intérprete de Brasil: ao mesmo tempo em que ele denuncia os abusos, as mortes e a destruição, também ficciona a política, o cinema e a educação, construindo um mundo em que vidas negras importam mesmo!
O afrofuturismo é um chamado para engrossar nossas fileiras diante da guerra contra as nossas vidas: mais que um ano novo, desejamos uma nova era. Decolonizar o futuro é preciso. Viver também.
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