CAPÍTULO I. Foi editada, no dia 4 de janeiro de 2017, a Medida Provisória n. 766. O referido diploma legal veiculou o Programa de Regularização Tributária – PRT. Denominado, pela imprensa, de “quase-REFIS”, o PRT estava centrado em várias possibilidades de parcelamentos, sem descontos ou reduções das dívidas consolidadas, em até 120 (cento e vinte) prestações mensais e sucessivas.
CAPÍTULO II. O deputado Newton Cardoso Junior (PMDB-MG), como relator da comissão mista responsável pela análise da MP n. 766, transformou o “quase-REFIS” num “super-REFIS” (ou “REFIS DA SONEGAÇÃO”). O parecer do relator, aprovado na comissão, admitiu que dívidas poderiam ser liquidadas com redução de 90% do valor das multas e de 99% do valor dos juros e honorários. O parcelamento foi ampliado para o limite de 240 (duzentos e quarenta) meses.
CAPÍTULO III. A Medida Provisória 766/2017 não foi aprovada pelo Congresso Nacional. Assim, o diploma legal em questão perdeu a eficácia no dia primeiro de junho do corrente ano. Aparentemente, o fantasma do “REFIS DA SONEGAÇÃO” (alternativa ao texto original do PRT) teria morrido junto com a aludida Medida Provisória. Mas foi só uma fugaz impressão…
Leia também
CAPÍTULO IV. O Palácio do Planalto e o Ministério da Fazenda trataram de ressuscitar o monstro. Negociações “estranhas” com o grupo de parlamentares que concebeu o “REFIS DA SONEGAÇÃO” fizeram nascer a Medida Provisória n. 783, editada no dia 31 de maio. Foi instituído, com essa nova MP, o Programa Especial de Regularização Tributária – PERT. Trata-se da volta do “REFIS DA SONEGAÇÃO” com ajustes em relação ao proposto no âmbito do Congresso Nacional. Entre os benefícios consagrados devem ser destacadas as hipóteses de reduções de juros de mora. Existem casos com diminuições de noventa, oitenta e cinquenta por cento dessa parcela de acréscimo ao valor original da dívida.
CAPÍTULO V. No dia 14 de julho, deputados e senadores romperam o acordo com o governo e aprovaram, em comissão mista que analisa a MP n. 783, o relatório com condições mais favoráveis para empresas devedoras. Segundo a imprensa, entre outros pontos: a) “o texto também ajuda igrejas, times de futebol, produtores de álcool, dentre outros grupos, com benefícios que nada têm a ver com o programa de refinanciamento de dívidas tributárias” e b) “na versão atual do relator, o deputado Newton Cardoso Júnior (PMDB-MG), há previsão de descontos de até 99% de multa e juros caso o devedor opte por uma parcela de 20% à vista calculada sobre o valor integral (sem descontos). Antes, previa-se uma parcela maior (25%) à vista para descontos de até 90% de juros e multas”.
A imprensa, nos últimos dias, divulgou dois dados estarrecedores acerca do “REFIS DA SONEGAÇÃO”. São eles: a) o relator da medida, deputado Newton Cardoso Júnior, é sócio de empresas que devem cerca de 51 milhões de reais ao Tesouro Nacional (https://goo.gl/g2kzyo) e b) deputados e senadores que devem quase 533 milhões de reais à União (como pessoas físicas ou em relação às empresas em que figuram como diretores ou sócios) votarão o generoso programa de perdão de dívidas (https://goo.gl/4bdv6j).PublicidadeHoje, os juros moratórios incidentes nos créditos tributários federais são representados pela taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic). Uma série de dispositivos legais veiculam essa definição (art. 13 da Lei 9.065/95; art. 84 da Lei 8.981/95; art. 39, §4º, da Lei 9.250/95; art. 61, §3º, da Lei 9.430/96 e art. 30 da Lei 10.522/2002). Nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ, a SELIC não pode ser cumulada com correção monetária. Com efeito, a atualização monetária já está contemplada na formação da taxa Selic (EREsp n. 727.842, EDcl no REsp n. 1.025.298, entre outros julgados).
Nesse sentido, é patente a inconstitucionalidade das reduções de juros nos patamares apresentados pelo governo e agravados pelo relator da comissão mista do Congresso Nacional. Essas exonerações, quase totais, de juros moratórios atentam inapelavelmente contra a isonomia, a moralidade e a razoabilidade, todos princípios constitucionais de observância obrigatória pelo legislador. Afinal, o devedor integrado ao PERT da MP n. 783, na versão governamental ou na versão mais escandalosa da comissão mista, pagará um valor menor do que o contribuinte que recolheu em dia, no prazo original previsto em lei, os créditos devidos ao Poder Público Federal.
Esse não é o primeiro, e provavelmente não será o último, conjunto de episódios reprováveis na lamentável novela dos programas especiais de parcelamento ou regularização tributária. Como pode ser facilmente observado, eles se sucedem, ano após ano, crise após crise, com vantagens cada vez maiores e mais abusivas. Essa triste constatação não deve alimentar a ideia de simples supressão desses expedientes. Afinal, eles podem, num quadro de razoabilidade, concorrer para a manutenção de empresas (e seus postos de trabalho) que enfrentam dificuldades momentâneas ou circunstanciais. Assim, seria preciso formatar esses mecanismos a partir critérios bem rigorosos. Duas ordens de definições, entre outras, devem ser cogitadas: a) os benefícios para adesão ao programa não podem colocar o devedor em condição mais favorável do que aquela experimentada pelo contribuinte que pagou regularmente (até o vencimento normal) as suas obrigações tributárias e não tributárias e b) a fixação de importantes contrapartidas, ao menos nas áreas trabalhista, ambiental e social.
É fundamental destacar que existe uma consequência profundamente danosa na adoção de programas de regularização fiscal sem as mínimas cautelas de razoabilidade, moralidade e igualdade. Consideráveis esforços efetivados pelos servidores da Administração Tributária, tanto no campo da fiscalização, quanto na atividade de recuperação judicial dos valores não honrados, são interrompidos, dificultados e até mesmo desacreditados ou desautorizados.
Os programas de regularização tributária reclamam disciplina, na linha antes referida, no âmbito de uma profunda e abrangente reforma tributária. Esse movimento de redesenho da tributação no Brasil deve contemplar as seguintes diretrizes: a) diminuição significativa da pressão fiscal sobre o consumo e o trabalho; b) incremento da oneração tributária sobre o capital, o patrimônio e as operações financeiras, incluída a instituição inteligente do imposto sobre grandes fortunas; c) programa consistente de combate à sonegação (no patamar atual de meio trilhão de reais por ano); d) fortalecimento da Administração Tributária, inclusive com a implementação ou aperfeiçoamento de programas voltados para a recuperação, em níveis adequados, dos créditos inscritos; e) revisão cuidadosa de renúncias fiscais e mecanismos sofisticados de redução seletiva da carga tributária (privilégios concedidos para vários segmentos socioeconômicos) e f) aprofundamento da simplificação e racionalização do sistema, especialmente para pessoas naturais e empresas de pequeno e médio portes.
Sintomaticamente, o debate acerca da tributação brasileira, assim como outros aspectos estruturais da vida nacional (administração da dívida pública, operações compromissadas, tamanho da base monetária, câmbio, formação de reservas, entre outros), não recebem a merecida atenção, notadamente pelos gigantes da comunicação. Parece, portanto, que os problemas nacionais de maior envergadura estão circunscritos aos aspectos fiscais das despesas com a previdência social, remunerações de servidores públicos e esquemas de corrupção. A perversa consequência da narrativa destacada, cuidadosamente construída e divulgada, é a falsa percepção de que a superação dos problemas nacionais passam necessariamente (e quase que exclusivamente): a) por reformas voltadas para restringir direitos sociais e b) pelo combate policial e judicial aos esquemas de malversação do patrimônio público.
Ocorre que não serão “salvadores da Pátria”, “líderes esclarecidos” ou reformas desarticuladoras do sistema de proteção social inscrito na Constituição de 1988 que colocarão o “Brasil nos trilhos”, como insistem os suspeitos governantes do momento e os igualmente suspeitos veículos de comunicação da grande mídia. É a força da mobilização e conscientização populares que mudará, com profundidade, a dantesca realidade brasileira. As transformações de fundo, com nítido caráter democrático e popular, dependem de uma cidadania com atuação enérgica e decisiva nos mais variados espaços sociais.
Existe um dado conjuntural com enorme potencial de fazer vingar o “REFIS DA SONEGAÇÃO”, com todas as suas mazelas. O governo de plantão e boa parte de suas forças de sustentação parlamentar “respiram” procedimentos escusos e práticas fisiológicas. Esses setores cumprem uma agenda, veiculada pelas classes dirigentes, voltada para o desmonte da rede de proteção social desenhada pelo Constituinte de 1988. Os ataques aos direitos sociais são poderosos, constantes e bem articulados. Nesse projeto estão inseridos, entre outros: a) o teto seletivo para gastos sociais; b) a reforma trabalhista; c) a terceirização e d) a reforma da previdência. Tudo aponta, portanto, para a existência de um contexto favorável a atuação mais despudorada possível dos interesses e pretensões mais descabidos e mesquinhos. Devedores e sonegadores de todo gênero viram na MP n. 766, e agora na MP n. 783, uma oportunidade singular de efetivar privilégios e benesses inimagináveis para quem trabalha com padrões mínimos de moralidade e decência.
Outros textos de Aldemario Araujo Castro sobre o assunto:
Refis da sonegação: a ponta do Iceberg
“Refis da sonegação”: o retorno
Leia também:
Parlamentares devedores da Receita moldam novo Refis em causa própria