É, sem dúvida, instigante o artigo acadêmico do ensaísta Francisco Bosco sobre a tomada das ruas pela direita, um divisor de águas na política brasileira recente. O blog Náufrago da Utopia publicou um resumo aqui e aqui.
Desde então só vimos acumulando derrotas, três das quais desastrosas: o impeachment da Dilma, a prisão do Lula e a emergência de uma extrema-direita jurássica na paralisação dos caminhoneiros.
A presença dos partidários da intervenção militar foi ostensiva, estridente e brutal (houve bloqueios nos quais só ruralistas e membros de sociedades anticomunistas estavam a postos para deter os veículos, impondo violentamente sua vontade aos caminhoneiros em nome dos quais se colocava o país de pernas pro ar, numa canhestra tentativa de putsch!).
Analistas traçaram muitos paralelos históricos, mas ficou faltando o mais apropriado: o levante integralista contra a ditadura de Getúlio Vargas, que era de direita, mas não estava tão à direita como aqueles fanáticos toscos queriam (exatamente como o governo de Temer!).
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E até a efeméride ajudava, pois no mês passado se completaram 80 anos desde tal putsch, que terminou com a prisão de aproximadamente 1.600 ativistas do nazifascismo tupiniquim, o fuzilamento de alguns deles e a partida de Plínio Salgado para o exílio (em Portugal).
Se esses deficientes mentais da atualidade não ignorassem completamente nossa história, estariam reverenciando os galinhas verdes que os inspiraram com urros de Anauê! (o Sieg Heil! à brasileira).
PublicidadeO que ficou faltando no artigo do Bosco foi o principal motivo de os efeitos transformadores das jornadas de junho de 2013 não terem, segundo ele, ido “muito além” de alavancarem movimentos identitários e inspirarem “o surgimento de novos movimentos sociais, à esquerda e à direita”.
Há um corte no seu relato, que nos remete diretamente ao que aconteceu depois, omitindo o que houve no meio, ou seja, a trajetória negativa que conduziu ao quadro por ele corretamente descrito:
“O gigante rapidamente foi se revelando menos progressista do que reacionário. Menos esclarecido que irracional. Menos espontâneo que titerizado por setores poderosos. Por fim, menos democrático do que autoritário”.
Lembremo-nos que aquelas manifestações começaram como um protesto contra o aumento das tarifas do transporte coletivo em São Paulo, com uma nítida visão de esquerda, magnificamente sintetizada no slogan “Por uma vida sem catracas”.
Noutro trecho Bosco foi mais feliz, ao explicar o que motivou tamanha adesão a um movimento que, aparentemente, se limitava a tentar abortar um aumento de 20 centavos na passagem dos ônibus:
“…era a revolta acumulada contra a tendência progressivamente privatista da democracia liberal (tiveram o mesmo sentido o Occupy Wall Street, em Nova York, e os Indignados, em Madri), que comprimia cada vez mais o espaço do comum, e contra um sistema institucional endógeno, blindado, que asfixiava a participação política, reduzindo ao mínimo possível sua intensidade”.
E, com a meninada do Movimento Passe Livre, uma nova geração de esquerda finalmente subia ao palco, assumindo um protagonismo que era a notícia mais auspiciosa para nós desde que a primeira eleição do Lula trouxe consigo a esperança de que dali em diante iríamos transformar pra valer a sociedade brasileira (esperança que foi melancolicamente se dissipando nos anos seguintes).
Mas, os jovens que, noutras condições, oxigenariam nossas fileiras foram esmagados pela brutal repressão das polícias estaduais e por uma perseguição judicial fascistoide, enquanto o PT emitia queixas tímidas só para constar e o governo federal lavava as mãos (o problema não é da nossa alçada), repetindo a traição histórica dos comunistas franceses ao maio de 1968, quando o principal sustentáculo do presidente De Gaulle acabou sendo o PCF e não o exército ou a direita.
Jamais esquecerei que, dentre tantos manifestantes e jornalistas triturados pela repressão do governador paulista Geraldo Alckmin e da ex-presidente Dilma Rousseff só se solidarizou publicamente a um coronel da Polícia Militar que foi ferido por black blocs depois de seus comandados barbarizarem centenas de jovens.
[Nos 696 protestos ocorridos em 2013 no Brasil, foram detidas 2.608 pessoas, feridas 837 – inclusive 117 profissionais da imprensa que estavam a serviço – e mortas oito. O coronel recebeu alta logo no dia seguinte…]
Depois, para que o clamor das ruas não prejudicasse o deprimente espetáculo do Mundial das Maracutaias, a repressão se abateu sobre o #naovaitercopa, intimidando de vez o componente de esquerda originário dos movimentos de junho de 2013.
Previsivelmente, a partir daí o componente de direita não teve mais concorrência e se apossou com facilidade do difuso inconformismo da sociedade brasileira, que a crise econômica potencializava.
E, no impeachment da Dilma, o PT pagou o merecido preço por sua postura infame de voltar as costas aos rebeldes de 2013 e favorecer a manutenção do status quo, na suposição de que empilharia mandatos como o PRI mexicano, sem verdadeiramente transformar o país.
Nós é que não merecíamos pagar tal preço, salvo, talvez, como castigo por nossa omissão ou impotência num momento decisivo.