Uma iniciativa registrada semana passada encabeçada por mais de 60 organizações e movimentos da sociedade civil jogou luzes sobre um assunto que até pouco tempo atrás parecia superado: a necessidade de fortalecimento da democracia e sua defesa intransigente.
À já ampla mobilização juntaram-se representantes de partidos políticos das mais diversas matizes, todos unidos pelo mesmo propósito. O resultado foi o manifesto Pacto pela Democracia, um documento público que continua angariando pela internet o apoio de pessoas, organizações e políticos. O objetivo comum a todos é a superação das diferenças na defesa coletiva de um espaço comum.
O país vem experimentando embates públicos que deixam clara a fragilidade de sua democracia, criando vácuos de poder que vêm sendo rapidamente ocupados pela defesa de modelos autoritários, defesa essa assustadoramente seguida por uma legião cega.
O acirramento ideológico entre posicionamentos políticos opostos que testemunhamos hoje expõem ódios e ressentimentos gerados a partir de uma luta de classes que lembram a Idade Média, só que em plena era digital, baseada na comunicação direta permanente e na troca instantânea de informações e dados via redes sociais.
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A motivação do “Pacto Pela Democracia” gera pânico por ter como base a crescente intolerância, a crescente naturalização da violência e a crescente ausência de bom-senso e de boa vontade em relação ao próximo e ao bem estar coletivo.
Afinal, que país queremos? O da insana batalha diária na base do cada um por si ou o do suave e constante compartilhamento de ações em prol de todos? O de salve-se quem puder (e quem for mais rico ou poderoso) ou o do vamos todos nos salvar juntos?
PublicidadeGrosso modo, a cultura brasileira tem 3 aspectos principais, sendo o primeiro o do “nós a serviço do eu”, o segundo o do autoritarismo, e o último o do messianismo. Eles são interligados e auto dependentes.
A nossa formação como sociedade impôs a ideia de que “eu” sou mais importante, de que a sociedade trabalha para mim. Isso se exemplifica em diversas situações do dia-a-dia. Tomemos o trânsito: o indivíduo pode furar uma fila, ultrapassar pela direita, mas quando é o outro quem faz isso, o indivíduo fica bravo, se sente desrespeitado. Quando é preciso dar espaço para algum carro entrar, o indivíduo passa e deixa o de trás dar passagem, porque ele é menos importante que eu. Se o indivíduo anda de bicicleta, a lei deve apoia-lo, os motoristas de carros estão errados, são agressivos, desrespeitosos. Mas se em outro dia este mesmo indivíduo dirige um carro, o ciclista é abusado, lento…
O pacto social existente é individual (não coletivo!) e móvel, segue para onde vai o indivíduo, e não estático e coletivo, como deveria ser para parametrizar a sociedade.
Nota-se, portanto, essa veia individualista, autoritária, uma vez que para nossa sociedade, o indivíduo sempre está acima do coletivo. E o que isso gera? Aos que se sentem e exercem a ideia de estarem acima do pacto social, acima da lei e acima dos demais, um líder autoritário, um ditador. E aos que estão abaixo, sendo oprimidos, a necessidade de um salvador, um messias que os libertará.
A mudança de nossa cultura, sintetizada pela Lei de Gerson, é lenta, longa, dolorida e aparentemente, em muitos casos, injusta. E claro que é, pois vamos deixar de ganhar sempre e muito individualmente, para ganharmos coletivamente; e isso às vezes da impressão que estamos ganhando menos e com menos relevância nas nossas vidas. Talvez muitos terão essa impressão porque não precisam de tanto quanto tem, ou não imaginam seu impacto e o de suas decisões no próximo, no coletivo, na sociedade que eles mesmos integram.
Quando queremos, podemos fazer juntos um país melhor e mais coletivo. Recentemente fomos capazes de conquistar vitórias excepcionais na direção do amadurecimento político, social e econômico visando um país mais justo e igualitário.
Criamos, por exemplo, uma política de cotas que facilitou aos jovens de famílias pobres e negras o acesso à universidade, dando início a uma reparação histórica e à mitigação da enraizada discriminação racial.
Avançamos também no combate à violência contra a mulher, não apenas com instrumentos legais, mas também pela conscientização da sociedade, algo muito mais profundo e duradouro, entre outros vários exemplos.
Mais um processo eleitoral está em andamento. Votemos com consciência, analisando os candidatos, e visando a um projeto maior, coletivo, no qual a sociedade ganhe mais que o indivíduo, ainda que este indivíduo seja você mesmo.
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