Carta Cidadã como Carta Branca
“Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”
Tomasi di Lampedusa, O Leopardo
Há um receituário de boas ideias que de tempos em tempos voltam à moda. Contudo, algumas são inadequadas pelo momento que despontam, outras desaconselháveis pelo patrocínio que arrastam. Não faltam até ideias admiráveis que ocorrem cumulando a possibilidade de virar tragédia exatamente por servirem bem como farsa.
Tivemos a respeitável proposta de parlamentarismo, mas chegou defendida como panaceia pelo ex-deputado Eduardo Cunha. Vimos a ex-presidente Dilma Rousseff amadrinhar a bandeira de constituinte específica para reforma política, sugestão entoada como balsâmica por meio de argumentos de difícil compreensão. E recentemente surgiu grita por eleições diretas para Presidente, trombeteada pelo mesmo PT que elegeu no mês passado sua presidente por eleição indireta.
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Agora trata-se de nova Constituição. Soberania em letras de forma. A pretensão do que se quer agora é absoluta. Trata-se de construir a Lei Maior, novo fundamento para todas as relações políticas e econômicas da sociedade brasileira. Diante da crise que engolfa os políticos dos três poderes e também as instituições que carreiam consigo, a ideia de nova constituição promete que tudo será resolvido. O diagnóstico é que nos faltam boas leis, como se acordos políticos, consensos sociais, práticas, atitudes e implementação de políticas públicas derivassem todos de um texto. Como se diz, é a confiança num “tigre de papel”.
Desta feita o gérmen da ideia surgiu pela boca de respeitadas biografias. Os juristas Modesto Carvalhosa, Flávio Bierrenbach e José Carlos Dias, pais da proposta, figuram entre as poucas personalidades nacionais de reputações sem nódoas. Seus nomes bastam para distinguir qualquer causa com ar impoluto. Mas essa áurea, essa fortuna da proposta pode ser a nossa desdita. No processo legislativo, diferentemente dos tribunais, o resultado final pode extrapolar o conteúdo inicial que dispara a construção normativa. Essa iniciativa, fortalecida pela qualidade da semeadura, cresce cercada por péssimas companhias, está destinada a maturar enxertos venenosos e fazer sombra sobre o que hoje de melhor frutifica.
O senador Renan Calheiros (PMDB-AL) já se lançou apoiador de primeira hora da nova Assembleia Nacional Constituinte. Depois de ter se recusado a receber Oficial de Justiça a serviço do Supremo Tribunal Federal (STF), onde é réu pelo crime de peculato, o senador discursa que “ninguém está acima da lei” e prega “a construção de um novo consenso”. Ele é alvo de 11 investigações, sendo oito na Lava Jato. Renan manteve os direitos políticos de Dilma e, mesmo sendo réu, permaneceu na linha sucessória da Presidência. Agora quer mudar a Constituição.
Já surgiu proposta de nova constituição também na Câmara dos Deputados. Lá muitos olhos mantêm-se fixos nos movimentos do Supremo Tribunal Federal. No entanto, não se trata de constitucionalismo a preocupação, e sim apreciação aflita das ações penais que, boiando no éter do foro privilegiado, de vez em quando se precipitam como uma chuva inesperada sobre a impunidade.
As propostas de nova Constituição tampouco são claras. Não conhecemos texto ou discurso justificando com plena inteireza essa imensa pretensão de reinaugurar o nosso mundo jurídico. Lemos e ouvimos apenas declarações esparsas e pontuais, breves cardápios de frases ligeiras; no máximo, artigos de opinião. E recorrer a sentenças curtas e tópicas para justificar a abertura de processo constituinte é semelhante a tentar expor Grande Sertão: Veredas em meia dúzia de slides. De fato, trata-se da abertura de um processo cheio de oportunidades, mas pelo momento do país podemos arriscar abrir a Caixa de Pandora, em que pesem nossas boas intenções.
Por que ser contra
“O problema brasileiro nunca foi fabricar constituições; sempre foi cumpri-las. Já demonstramos à saciedade, ao longo de nossa história, suficiente talento jurisdicista ‒ pois que produzimos sete constituições, três outorgadas e quatro votadas ‒ e suficiente indisciplina para descumpri-las rigorosamente todas!”
Roberto Campos, discurso inaugural no Senado, 8/6/1983
Em primeiro lugar, não há mudança no cenário histórico que permita inauguramos marco jurídico para novo capítulo da vida nacional. Vale lembrar que a nossa Constituição Federal foi construída com o retorno ao regime democrático, mudança histórica maiúscula e responsável por firmar o novo horizonte de uma sociedade subdesenvolvida e tutelada, mas que já ali exigia ser livre e avançada. Saímos da ditadura e criamos a atual Constituição, não era uma balsa de resgate de incriminados na Lava Jato.
Em segundo, a sociedade não exige uma constituinte. Não há mobilização social reclamando essa mudança. As passeatas não reclamam nova Constituição. Não há um único cartaz nessa direção. Ao contrário, as passeatas protestam pelo cumprimento da atual Constituição e chamam isso corretamente de radicalizar a democracia. Nossa constituição começou sim a dar frutos, e destes frutos é que a sociedade reclama por mais.
Em terceiro, não há lideranças políticas capazes de capitanear o processo e imantar o país nesse ideário de formação da nova Constituição. Até aqui não se avistam candidatos a novo Ulysses Guimarães. De fato, a palavra líder, abusada por áulicos de gabinetes em Brasília, não se depara com seu uso legítimo há bastante tempo, expulsa que foi da arena pública por práticas ou sectárias, ou corruptas, ou demagogas. E sem lideranças de amplo espectro capazes de conduzir novo processo constituinte, sobrará calor e faltará luz.
Em quarto, não há elenco parlamentar, nem partidos, nem práticas eleitorais que gozem de legitimidade para tal movimento. A classe política está desacreditada. Só a famosa lista do Ministro Edson Fachin beira uma centena de políticos.
Em quinto, parte do que se quer está na atual Constituição. Umas das justificativas para nova Constituição é a de limitar o valor recebido pelo servidor ao teto atualmente previsto na Constituição. Essa petição não faz sentido, pois já há o teto. O texto não necessita ser reeditado, precisa ser cumprido. O mesmo pode ser dito da “inclusão do princípio da isonomia na Constituição, de modo que a lei estabeleça tratamento igual para todos, em complementação ao princípio vigente de que todos são iguais perante a lei”. Pela Constituição atual, já somos todos iguais perante a lei. O que a população deseja é que tal dispositivo seja verdadeiro e levado a sério, não reescrito em novas letras douradas em mandamento a ser descumprido.
Em sexto, não há necessidade de nova Constituição para realizar as mudanças pretendidas. Não é preciso apelar a Poder Constituinte Originário para (1) acabar com privilégios, inclusive abusos no favorecimento de foro privilegiado, (2) reduzir cargos de confiança na administração pública e (3) fazer extensa e profunda reforma política.
Em sétimo, parte do que se pretende é impossível. Não é possível, por exemplo, replicar o modelo de gestão privada no serviço público. A boa administração pública é aquela que equilibra princípios privados (como eficiência e eficácia) com princípios públicos (como transparência, diálogo com a sociedade e prestação de contas), por isso funciona e deve funcionar de forma diferente. É preciso radicalizar a transparência, a prestação de contas e a eficiência, não polir e iluminar um falso ídolo. Nem tampouco é possível restringir todas as nomeações de livre provimento a servidores concursados. O cargo de ministro é desenhado para trato político com o Congresso. Sem isso as políticas públicas não chegarão sequer ao Diário Oficial. Só há um modo de tornar o oficio de ministro alheio à política: interrompendo a democracia. O que é preciso fazer é racionalizar a máquina de Estado, mas isso não é tarefa constitucional, isso se chama gestão.
Em oitavo, o que se vê proposto até aqui não anuncia, nem detalha o suficiente o rito que se pretende ver instalado, as propostas são imaturas para orientar movimento. Não está dito como se formará esse novo colégio constituinte, quem convocará, quem poderá ser eleito. Se o diabo mora nos detalhes, cabe minudenciar os pormenores. O que se vê ainda não tem estofo de proposta, é opinião, e não se pode lançar movimento por nova Constituição com base apenas em disposição pessoal.
Em nono, as propostas querem submeter a constituinte a restrito elenco de temas, no geral regras eleitorais e trato político. Se o processo for iniciado, apenas forças políticas o deterão, e é diante dessa força que as esperançosas propostas estão se postando. Surgirá facilmente o argumento que não há constituinte submetida à regra anterior. A proposta de constituinte é necessariamente formal, o conteúdo material só pode ser estabelecido no correr dos trabalhos, e determinado pela política.
Em décimo, e como consequência do ponto anterior, ninguém sabe o que poderá sair de uma constituinte, quais direitos serão perdidos e quais novos deveres surgirão. Nunca é pouco lembrar, não há direito adquirido frente à Constituição. É um completo novo.
Em décimo primeiro, desvia o foco da sociedade da luta por fazer valer as leis vigentes. E não perder esse foco é vital agora.
Em décimo segundo, a Constituição deve ser preservada das lutas político-partidárias conjunturais. Tanto mais agora. A Constituição é o esteio firme que nos orienta, é a síntese impossível num país com dificuldade de formar consenso.
E por fim, somos contra porque essa proposta pode vingar. Em tempos serenos, essa proposta nem mesmo seria cogitada, mas dado o desarranjo do cenário político, dado o desespero por soluções, vozes respeitáveis passam a acreditar no inacreditável.
É preciso insistir que nada poderá ser feito de modo duradouro num só instante. Sem dedicarmos muito tempo, só perderemos tempo. Estabelecer grandes consensos nacionais é um feito histórico. Somos mais de 200 milhões de pessoas espalhadas por estados mais irmãos e mais diferentes do que os dedos da mão. É um erro imaginar que exista unidade nacional com massa crítica suficiente para iniciar um processo constituinte neste momento. Precisamos ser mais políticos, investir em democracia, em participação, em debate, em prática cívica, e não sonharmos com a redação perfeita de um sonho. A letra que sustenta nosso espírito cívico não é uma redação, antes de marcar o papel se forjou como possibilidade de ideal nacional.
O Futuro Próximo
“Bandeira branca enfiada em pau forte…”
Caetano Veloso, em “Triste Bahia”
Ao nos reconhecer cordiais, Sérgio Buarque de Holanda denunciou a dificuldade nacional de seguir regras impessoais, cumprir protocolos, obedecer uma Constituição. Somos cordiais, somos próprios do coração. Nosso respeito ao próximo é quase só com quem está ao alcance dos olhos. Nossa sociabilidade é um ajuste pessoal emotivo, grupal, familiar. Nossa perversidade é mais indiferença do que ódio. “Outro” parece um termo sem referente. E assim defendemos a ilusória inviolabilidade do espaço privado sem enxergar o espaço público.
O parto de civilidade desta década no Brasil é afirmar o Império da Lei e criar o espaço público sem secar essa nossa afetividade. Proteger a misericórdia que ata e comove atacando a arbitrariedade que separa e assalta. Impor a ordem pública fundada na razão da normatividade abstrata a esse convívio do compadrio dos chegados. Dar a ver a grandeza da autoridade que existe para servir. Só assim o Brasil dos Direitos se imporá por sobre o Brasil dos favores. Só assim poderá haver igualdade entre as pessoas.
Só assim a face monstruosa da simpatia nacional pela “gente nossa”, que tem por lastro uma inclinação humana das mais naturais, será civilizada pelo artificial Império da Lei. Só assim “coletivos” são cidadania. Só assim seremos uma só nação.
E só assim você poderá ficar livre do medo, pois não há proteção possível para o seu espaço privado, a sua casa, sem cuidarmos do nosso espaço público, das nossas ruas.
No momento atual a Lava Jato inaugura algo inédito no nosso espaço público: colocou bandido rico na cadeia. Não é só uma prisão, é uma explosão, a explosão do muro que separa o Brasil que tudo pode do Brasil que paga tudo. O rompimento de uma barreira para nos colocar a todos em um único inteiro sob o somando de uma mesma Constituição. Aquilo não são apenas processos em tramitação, é um rito de passagem nacional.
Mesmo diante de emoções que agora tanto nos dividem, a aplicação da lei nos irmana. Só a Justiça se sustenta sob o sol.
Brasil precisa ver a Operação Lava Jato concluir seus trabalhos. Nada, nem uma constituinte, pode interromper essa marcha. É vital impor a lei sobre os agentes da indigência cívica, e pouco importa qual seja a quadrilha que esses criminosos tenham como fachada.
Esta conclusão deve perseguida pela razão correta. Não pela desforra. Não para virar o jogo. Não para oprimir o opressor, o que só alargaria a opressão. Sem troco, sem raivas ou inimigos. Basta poder recomeçar. Mas para isso é preciso chegar ao fundo dessas investigações e ver a verdade dos fatos. Precisamos ir – não pela vingança – pela verdade. E quando pudermos dizer que temos uma verdade, aí sim, estaremos prontos para seguir em frente.
Só nesse momento, então sob o Império da Lei, teremos força até para exterminar o que não poderá existir, poder inclusive para acabar de vez com passado, direito até mesmo para pôr fim definitivo no mal, em outras palavras, poderemos optar pelo perdão.
* João Aurélio Mendes é formado em Engenharia Civil pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Foi presidente da Associação e do Sindicato Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (Anesp) e primeiro presidente da Federação Nacional de Carreiras de Gestão de Políticas Públicas (Fenagesp).
** Ricardo de João Braga é economista, graduado na Unesp, e cientista político, com mestrado pela Universidade de Brasília (UnB) e doutorado pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj).