Ronaldo Brasiliense*
Que as Forças Armadas brasileiras passam por um período traumático de sua história, enfrentando cortes orçamentários sem precedentes nas últimas décadas, disso quase todo mundo tem conhecimento. O que poucos sabem é do quadro terminal enfrentado pela Marinha do Brasil que, totalmente sucateada, está recorrendo à "canibalização" de antigos navios para manter a esquadra em funcionamento. Para se ter uma noção da crise, nos últimos cinco anos, a Marinha teve de desativar 21 navios e nove aeronaves, tendo incorporado no mesmo período apenas oito navios.
Informações recebidas em caráter reservado pelo senador paraense Fernando Flexa Ribeiro (PSDB) mostram a situação de penúria da Marinha brasileira, duramente atingida pelos cortes promovidos pelos ministérios da Fazenda e do Planejamento em seu orçamento. "O avançado estado de degradação dos meios navais e aeronavais, agravado pela acentuada carência orçamentária dos últimos anos, está levando a Marinha do Brasil a uma constrangedora e crescente vulnerabilidade estratégica, sem precedentes nos últimos 40 anos", alerta o documento entregue ao parlamentar por um grupo de oficiais.
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Por causa da crise, metade dos navios e submarinos da Marinha encontra-se imobilizada e apenas 40% de suas aeronaves estão em condições de vôo. O estudo mostra que, se nada for feito, em menos de 20 anos a esquadra brasileira poderá se extinguir, criando uma "constrangedora vulnerabilidade estratégica, sem precedentes na história do Brasil". Diz o relatório: "A falta de sobressalentes, combustível e munição compromete seriamente a continuidade do preparo de nossos oficiais e praças e o próprio estado de prontidão da força, como um todo".
O documento chama atenção para a possibilidade de paralisação do Programa Nuclear da Marinha e do Programa Antártico, comprometendo pesquisas em andamento e a participação brasileira nas decisões internacionais que afetam a região.
PublicidadeDentre as atribuições da Marinha de guerra brasileira, está o patrulhamento do extenso mar territorial brasileiro, de 200 milhas a partir da costa, numa extensão superior a 7 mil quilômetros, entre o litoral do Rio Grande do Sul e o litoral do Amapá, sendo fundamental no apoio ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em operações contra a pesca predatória desenvolvida na costa brasileira, principalmente por barcos pesqueiros asiáticos.
Canibalização
Um dos programas que podem ser atingidos pela falta de manutenção da Matinha brasileira é o que garante a proteção da costa atlântica e das plataformas de petróleo. O desaparelhamento da Marinha compromete inclusive as ações de socorro e salvamento no mar, acarretando o descumprimento de convenções internacionais firmadas pelo governo brasileiro.
O documento ressalta a preocupação da Marinha com o índice de disponibilidade de navios. Daqueles que se encontram em operação, muitos se encontram com restrições operacionais. Alguns apresentam deficiência em equipamentos eletrônicos, outros têm problemas de propulsão. A maioria já está em uso há décadas e tem problemas com reposição de peças.
Outro programa ameaçado pela falta de recursos é o atendimento que os navios da Marinha asseguram nas operações de assistência hospitalar às populações ribeirinhas da Amazônia. Há décadas, corvetas e navios-hospitais subordinados ao IV Distrito Naval, sediado em Belém, têm sido fundamentais no atendimento aos ribeirinhos que vivem em áreas distantes dos centros urbanos, principalmente na região do Baixo Amazonas e no Alto Solimões, onde ainda hoje existe uma carência muito grande de hospitais de média complexidade. Em muitos municípios do interior, nem médico há.
O estudo informa que o Alto Comando da Marinha aponta os seguintes caminhos para reverter a situação de sucateamento: a implementação do Programa Emergencial de Recuperação do Poder Naval e do Programa de Reaparelhamento da Marinha, que seriam viabilizados por meio da liberação da parcela de recursos contingenciada de royalties destinados por lei à Marinha do Brasil pela proteção das áreas de produção petrolífera na plataforma continental.
Para tentar contornar a situação de caos nas Forças Armadas, especialmente na Marinha, diz o senador Flexa Ribeiro, o Senado já aprovou a criação de uma subcomissão no âmbito da Comissão de Relações Exteriores para estudar com profundidade a situação do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, que perderam status de ministério com a criação do Ministério da Defesa e estão cada vez mais sucateados e sem recursos.
Sem recursos orçamentários, o Alto Comando da Marinha está autorizando a "canibalização" de outras embarcações, reaproveitando peças para que as corvetas e navios de guerra possam continuar navegando, mesmo de forma precária. "A atual degradação material da Marinha do Brasil atingiu níveis considerados críticos. É preciso que a nação tenha conhecimento desse quadro dramático", adverte um almirante-de-esquadra da reserva.
Outro lado
O Congresso em Foco procurou, na tarde de segunda-feira, as assessorias de imprensa dos ministérios da Fazenda e da Defesa em busca de explicações sobre a retenção dos recursos de royalties e os demais problemas apontados pelo documento. Nenhuma das assessorias se manifestou.