O governo brasileiro não sabe exatamente o volume de terras ocupadas por estrangeiros no Brasil. Levantamento feito pelo Congresso em Foco com as maiores empresas controladas por outras nacionalidades apurou pelo menos 1 milhão de hectares que não aparecem no cadastro de terras de empresas estrangeiras do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), onde há o registro de apenas 503 mil hectares.
A regulamentação dessas aquisições nos últimos 20 anos, baseada em pareceres da Advocacia-Geral da União (AGU), portarias e instruções ministeriais, gerou insegurança jurídica para cartórios e investidores e abriu brechas para burlar o cadastro de terras. O governo federal parte agora para aprovar uma nova legislação sobre o tema sem saber onde estão, o que produzem e quantos milhões de hectares ocupam os gringos.
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A Lei 5.709/1971, que regulamenta a compra de propriedades rurais por estrangeiro, impõe restrições a empresas brasileiras controladas por pessoas ou empresas de outras nacionalidades. Em 1994, um parecer da AGU estabeleceu que empresas brasileiras, ainda que controladas por estrangeiros, estavam excluídas dessas restrições. Em agosto de 2010, novo parecer do mesmo órgão revalidou a lei sancionada quase 40 anos antes. Entre um e outro parecer, foi reduzido o número de registros de terras de outras nacionalidades nos cartórios de imóveis, que tinham dúvidas sobre a regulamentação.
Diante do descontrole no cadastro de terras, uma “instrução normativa” interministerial determinou, em 2012, que empresas brasileiras controladas por estrangeiros que tivessem adquirido ou arrendado terras de junho de 1994 a agosto de 2010 poderiam recadastrar o imóvel no Cadastro Rural do Incra sem qualquer sanção administrativa. O resultado foi pífio.
Números inconsistentes
Em 2007, havia 3,8 milhões de hectares em mãos de estrangeiros, segundo nota técnica do Ministério da Agricultura. Em 2010, esse número chegou a 4,3 milhões de hectares – área equivalente aos estados de Alagoas e Sergipe juntos. Em outubro do ano passado, o Incra forneceu à reportagem, por meio da Lei de Acesso à Informação, uma relação com 3,4 milhões de hectares, sendo apenas 831 mil de empresas controladas por estrangeiros.
O Congresso em Foco apontou uma série de inconsistências na lista, como a fazenda Sepotubal, em Nova Olímpia (MT), com 9,1 milhões de hectares – quase 60 vezes a área do município. Uma propriedade em Guarapuava (PR) tinha 3 milhões de hectares. O site informou, ainda, que grandes empresas proprietárias de 200 mil a 300 mil hectares ou não estavam na relação ou haviam registrados números bem menores.
O Incra fez correções no cadastro e apresentou uma segunda lista no dia 10 de março, totalizando 2,8 milhões de hectares, sendo 632 mil de empresas com controle estrangeiro. O restante era de pessoas físicas. O site apontou novas inconsistências. Nesta segunda-feira (27), o Incra apresentou uma terceira relação, feitos novos ajustes, agora com 2,4 milhões de hectares, sendo 502 mil de empresas.
Registros parciais
A Celulose Nipo-Brasileira (Cenibra), controlada pela Japan Brazil Paper, produziu 1,2 milhão de toneladas de celulose no ao passado. A empresa conta com 254 mil hectares para a produção de eucaliptos em Minas Gerais. Fundada em 1973, só em 2016 a empresa cadastrou parte de suas terras. No cadastro do Incra, constam apenas 93 mil hectares.
A poderosa empresa chilena Arauco produz 3,9 milhões de toneladas de celulose e tem 1,6 milhão de hectares de florestas em quatro países: Chile, Brasil, Argentina e Uruguai. Desse total, 145 mil estão no Brasil. No cadastro do Incra, estão registrados apenas 28 mil hectares da papeleira.
Outra empresa de celulose Chilena, a CMPC, com produção anual de 3 milhões de toneladas, tem no Brasil a Celulose Riograndense, instalada em Guaíba (RS), distante 30 quilômetros de Porto Alegre. A empresa comprou seus 324 mil hectares de florestas de uma empresa brasileira em 2009, antes, portanto, do parecer da AGU que impôs limites à aquisição de terras por estrangeiros. Não há registros da suas terras no Incra.
A empresa do agronegócio El Tejar, criada por argentinos e atualmente controlada por americanos e britânicos, tem 75 mil hectares no Mato Grosso, onde planta milho, soja e algodão. Não há registro das suas terras no cadastro do Incra.
A papeleira Stora Enso, empresa sueco-finlandesa, comprou 60 mil hectares de terras no Rio grande do Sul a partir de 2005. Pretendia implantar uma fábrica de celulose no estado. Como as terras estavam em área de fronteira – o que é vedado pela legislação –, precisou fazer a compra das terras por intermédio de uma empresa criada por dois de seus diretores, a Azenglever.
Em 2009, a multinacional conseguiu do Conselho de Defesa Nacional autorização para registrar as terras em seu nome. Comprou, então, as propriedades que estavam em nome dos seus diretores. Mas a Azenglever ainda tem hoje 12 mil hectares em seu nome no cadastro do Incra. A Stora Enso registrou apenas 1,3 mil hectares.
No Sul da Bahia, a Stora Enso implantou uma fábrica de celulose, a Veracel, em sociedade com a brasileira Fibria. A empresa tem 227 mil hectares de florestas. Como cada uma das acionistas tem 50% do capital, a papeleira não registrou suas florestas no cadastro de terras estrangeiras.
Uma corretora com sede no Brasil comprou 40 mil hectares no Piauí para empresas estrangeiras antes do parecer de 2010. A empresa afirma ter registrado as aquisições em cartório. Mas esses dados não aparecem no cadastro de estrangeiros do Incra. A empresa concedeu entrevista sob a promessa de ter o seu nome mantido em sigilo.
Respostas
A Cenibra afirmou à reportagem que “respeita e cumpre a legislação vigente”. “A Empresa realiza a certificação das áreas junto ao Incra e ao Cadastro de Imóvel Rural. Ambos processos em estado evolutivo de atualização. Além disso, mantém todos registrados em cartório de registro de imóveis, com a devida documentação regularizada”.
A CMPC disse que possui imóveis rurais no país juntamente com sociedades integrantes do seu grupo econômico. “Foram adquiridos antes de 2010 e, portanto, antes da emissão do Parecer da AGU nº 01/2010. Com relação ao cadastro no Incra destinado exclusivamente a empresas brasileiras com controle de capital estrangeiro, esclarecemos que os imóveis rurais já adquiridos pelas sociedades do grupo CMPC encontram-se devidamente cadastrados em nome das respectivas sociedades proprietárias”.
O diretor-presidente da El Tejar, Ismael Turban, afirmou que as terras da empresa foram compradas antes do parecer de 2010 da AGU e que o grupo é formado por algumas empresas – a Fler Participações, a Fleurac, a CV Angenita, a Agropecuária Primavera do Oeste e a Fere Holding. “Algumas têm já terra registrada em seu nome no cartório de registro imobiliário e outras têm o direito de aquisição, porque foram terras adquiridas em 2007 e 2008. Não conseguimos transferir para o nosso nome por uma questão de georreferenciamento”.
Na relação enviada ao site em 10 de março, havia 9 mil hectares registrados em nome da Fler, da CV Angenita e da Agropecuária Primavera – muito distante ainda dos 75 mil hectares pertencentes ao grupo. Na lista entregue nesta segunda-feira, esses dados sumiram.
A Veracel respondeu que, desde que a empresa foi criada, toda a documentação de propriedade de terras está regularizada e em nome da Veracel. A Veracel afirma que possui todas as suas documentações devidamente registradas e em dia.
A Arauco não respondeu aos questionamentos encaminhados pela reportagem.
O Incra apontou possíveis erros de digitação na planilha e problemas durante a migração dos dados para o atual sistema informatizado. “A autarquia está identificando os erros e vai solicitar aos proprietários a apresentação da documentação com a finalidade de promover as correções necessárias”, respondeu. Sobre a situação da CMPC e da Veracel, informou que “essas empresas estão sendo objeto de processo administrativo de apuração”.
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