Revista Congresso em Foco
Um ano na fila da rede pública de saúde do Distrito Federal (DF). Esse foi o tempo que a autônoma Dulcimar Maria Oliveira, de 58 anos, teve de esperar, após o diagnóstico de câncer de mama, para iniciar o tratamento de radioterapia pelo Sistema Único de Saúde (SUS) na capital do país. Da descoberta da doença, em 2015, até a primeira consulta, foram três meses de incertezas. Ainda assim, ela se considera uma pessoa de sorte.
“Consegui superar a doença. Não foi fácil. Tenho que dar glória todo dia porque dei sorte. Fiz a quimioterapia, a cirurgia e a radioterapia. Tenho de tomar a medicação durante cinco anos e, de três em três meses, voltar lá para acompanhar”, diz.
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Outra sobrevivente é a vendedora Carmen Silva Alves, de 51 anos. Após superar um câncer de mama em 2010, ela recebeu um novo diagnóstico, dessa vez de câncer no pulmão, em 2016. A maior barreira a ser vencida por ela, no entanto, não foi a doença, mas a dificuldade para realizar exames e conseguir os remédios. “Corri muito atrás. Eu ia ao hospital todos os dias. Eles me falavam ‘não tem leito, não tem como fazer a biópsia’. Consegui fazer o tratamento no HUB (Hospital Universitário de Brasília) porque lá no Hospital de Base não tinha nada, nem leito, nem material, nadinha. Depois do diagnóstico, demorou pelo menos uns seis meses nessa batalha, correndo para o hospital, para eu conseguir a operação em novembro”, conta.
Filas intermináveis e processos judiciais movidos por cidadãos que têm urgência para serem atendidos pelo SUS viraram uma marca na rede pública do DF, que já chegou a ser considerada uma das melhores do país, revela reportagem da nova edição da Revista Congresso em Foco. Mesmo com 10,41% do orçamento de 2017 destinado à saúde, totalizando R$ 2,842 bilhões em despesas liquidadas, segundo o Portal da Transparência do Distrito Federal, a própria Secretaria de Estado de Saúde (SES-DF) estima que 760 pacientes estejam na fila para a primeira consulta com um oncologista, médico especializado em câncer.
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Quando o médico determina a realização de quimioterapia, o início é imediato. Já no caso da radioterapia, a fila para o tratamento pelo SUS é de 430 pessoas. Tanto Carmen quanto Dulcimar têm condições de manter seus tratamentos graças à Associação Brasileira de Assistência às Pessoas com Câncer (Abrapec), organização não governamental que atua há 15 anos em Taguatinga.
Na ONG, que funciona à base de doações, os pacientes encontram suporte jurídico e psicológico, apoio na obtenção de medicamentos, além de atividades recreativas como oficinas de artesanato, dança, aulas de violão e yoga. “Venho por causa da amizade, dos exercícios, para me distrair um pouco. Quem tem essa doença fica com medo de que ela volte. Qualquer coisa que eu sinto, já penso que é ela. Tanta gente já morreu disso”, desabafa Maria Franco de Oliveira, de 74 anos.
Diagnosticada com um câncer de pele há quatro anos, a aposentada foi operada em um hospital particular de Brasília graças a uma “vaquinha” feita por amigos e familiares. Ela também critica o atendimento na rede pública da capital. “É péssimo. Agora fecharam o posto de Taguatinga, que ficava perto da gente. Quem não tem dinheiro para ir de ônibus, vai a pé mesmo. Ficou mais difícil para se cuidar. Agora é entregar nas mãos de Deus”, lamenta.
O Instituto Nacional do Câncer (Inca) estima que 596 mil pessoas tenham desenvolvido câncer no Brasil em 2017, mesma marca atingida no ano anterior. De cada dez pacientes, seis têm o seu diagnóstico quando a doença já está em estágio avançado. Um em cada três casos poderia ser evitado se tivesse sido diagnosticado com antecedência. Entre todas as doenças, o câncer é a segunda maior causa de mortes no Brasil – 190 mil por ano –, atrás apenas dos problemas cardiovasculares. Ainda de acordo com o Inca, pelo menos 8.550 pessoas passaram a ter câncer apenas no Distrito Federal em 2017. Ao todo, 54% são mulheres e 46%, homens. O mais comum entre elas é o de mama. Já entre eles, o de próstata.
Radioterapia
No tratamento do câncer, a radioterapia pode ser utilizada em diversas situações, tanto em pacientes com um tumor inicial, que pode ser curado só com o uso da técnica, quanto dentro de um tratamento multidisciplinar, associado à cirurgia e à quimioterapia. O tempo que um paciente pode esperar pelo início do tratamento, no entanto, depende da sua situação clínica. É o que explica o professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Eduardo Weltman, coordenador médico do serviço de Radioterapia do Hospital Albert Einstein.
“Existem tumores que você pode esperar um pouco, fazer algum outro tratamento enquanto aguarda o início da radioterapia, e há tumores em que o tratamento têm de começar de imediato. Depende muito do diagnóstico do paciente. Existem situações clínicas em que, se não iniciarmos a radioterapia de imediato, aquele tumor vai crescer e eliminar a chance de o paciente ser curado. No caso de pacientes que já apresentam sintomas, não há como esperar. São pessoas que sentem dores, com sintomas relacionados ao tumor, que poderiam ser resolvidas com o uso da radioterapia. Se estiver esperando já há algum tempo, vai ser um sofrimento desnecessário”, afirma o especialista.
Presidente da Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT), Weltman afirma que a demora no início do tratamento pode reduzir as chances de recuperação e trazer consequências fatais para o paciente. “Provavelmente, alguns pacientes estão sendo muito prejudicados com essa fila”, acrescenta. Atualmente, o tratamento de radioterapia na capital federal pode ser feito no Hospital de Base do Distrito Federal (HBDF), no Hospital Universitário de Brasília (HUB) e no Hospital Sírio-Libanês.
Desses, apenas o primeiro é da rede pública do Distrito Federal. O segundo é federal, e o último, particular. Dos dois equipamentos que funcionam no HBDF, o que opera à base de cobalto foi fabricado em 1984, há 33 anos. Já o HUB tem apenas um aparelho em funcionamento. Em julho deste ano, foi entregue ao hospital pelo Ministério da Saúde um novo acelerador linear, que tem capacidade para realizar até 43 mil sessões de radioterapia por ano, ampliando a taxa de atendimento em até 25%. O equipamento, no entanto, ainda não foi inaugurado. Passadas as fases de montagem e testes, a previsão é que a segunda máquina entre em funcionamento no HUB até o fim de dezembro.
Sem encontrar respaldo para o tratamento de radioterapia na rede pública de saúde, os pacientes do DF recorrem a organizações como a Abrapec e o Instituto de Apoio ao Portador de Câncer (IAPC), que atua há 17 anos no Núcleo Bandeirante, abrigando pessoas de diversas partes do país. Para Anderson Araújo Alves, um dos supervisores do IAPC, a falta de equipamentos, que não suprem a enorme demanda da capital federal e da região do Entorno, é a principal explicação para a crescente fila de pessoas à espera do procedimento.
“Tem pouca aparelhagem. A radioterapia no DF só tem praticamente um aparelho, que é o acelerador linear. O de cobalto estava funcionando há um tempo, entrou em manutenção e só conseguiram consertar agora. Temos esses aparelhos trabalhando para atender todo o Distrito Federal e o Entorno. Imagine quantos pacientes temos além disso. A demanda é muito grande”, relata. Anderson considera de suma importância o apoio dado aos pacientes com câncer por instituições como o IAPC e a Abrapec.
“Aqui damos todo um suporte, tanto de alimentação, medicação, apoio psicológico. Às vezes na rede pública não tem como fazer um exame, e procuramos pagar esse exame para o paciente fazer. Sem a instituição, esses pacientes ficariam desamparados sim, porque a maioria dos que vêm para cá é de baixa renda”, destaca.
Situação precária
Os problemas da saúde pública na capital federal levaram o Instituto de Fiscalização e Controle (IFC), uma ONG, a colocar em prática, em parceria com a Controladoria Geral do Distrito Federal (CGDF) e outras instituições, o projeto da Auditoria Cívica na Saúde. Em sua primeira edição, em 2016, a iniciativa reuniu cerca de 300 voluntários, que percorreram 63 unidades básicas de saúde, distribuídas em 17 regiões administrativas do DF, avaliando os serviços oferecidos, a estrutura física dos postos de atendimento, equipamentos e estoques, e conversando com gestores, funcionários e pacientes.
Entre as principais dificuldades encontradas pela auditoria estão a falta de acesso das unidades de saúde a informações sobre a demanda reprimida para especialidades e exames; a ausência de transparência na fila de espera – os usuários não sabem qual é a sua posição na lista; a demora para a marcação de consultas, que pode chegar a um ano dependendo da especialidade; além da escassez de médicos e de problemas de conservação observados em alguns postos de saúde, que apresentam infiltrações, mofo e infraestrutura elétrica e hidráulica comprometidas.
A partir dessas constatações, foi produzido um relatório que foi entregue à Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Neste ano, os voluntários retornaram às unidades básicas para verificar o que foi corrigido. O novo documento, no entanto, ainda não tem prazo para ser apresentado.
Promessa de melhora
Procurada pela Revista Congresso em Foco, a Secretaria de Saúde informou que espera a consolidação do relatório da auditoria cívica realizada em 2017 para mensurar a taxa de resolução dos problemas encontrados. Justificou ainda que o atual modelo, baseado no programa Saúde da Família, foi adotado em países que hoje possuem os melhores resultados em atendimento público, como Inglaterra e Portugal. No DF, a meta é aumentar a cobertura de atenção primária para 70% até meados de 2018.
“Antes de iniciado o projeto, a cobertura de Atenção Primária no DF era de menos de 30%. Hoje, já está próxima de 50%, sendo que em algumas áreas mais carentes, como o Sol Nascente, já atingiu 100%”, assinala, em nota, a secretaria. Já sobre uma das principais queixas dos pacientes das unidades básicas, a falta de informações na marcação de consultas, a Secretaria de Saúde afirma que implantou recentemente um complexo regulador para solucionar as lacunas de informação, o que seria “uma solução inovadora que já tem dado ótimos resultados em outros estados”.
O órgão acrescenta ainda que “tem trabalhado junto às áreas técnicas para promover o incremento da gestão estratégica da informação e evoluir no que diz respeito à transparência das informações de cada setor”. Com o objetivo de entender o fluxo de gastos da Secretaria de Saúde do DF e onde o dinheiro é investido, o IFC solicitou três vezes, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), o saldo das contas bancárias do Fundo de Saúde do DF, que gerencia o orçamento distrital, os repasses do Ministério da Saúde e a aplicação de recursos no setor.
A informação, no entanto, foi três vezes negada, segundo a presidente do instituto, Jovita Rosa, sob a justificativa de ser sigilosa. “Nós do IFC, no ano passado, vimos uma planilha do recurso que o Ministério da Saúde repassa regularmente para a atenção básica aqui no DF. Em agosto, eles só tinham executado 12%. Não é o dinheiro parado na conta que vai gerar saúde para a população”, diz.
O montante, segundo ela, rende juros que ajudam o governo local a enfrentar a maior crise financeira de sua história. Questionada sobre o motivo para a recusa dos pedidos, a Secretaria de Saúde alegou que o Fundo de Saúde do DF não negou as informações e repassou o link do Portal da Transparência e de outras páginas acessíveis à consulta de qualquer cidadão. Ainda assim, de acordo com Jovita, os dados cedidos pela secretaria, que incluem repasses do Fundo Nacional de Saúde feitos pelo governo federal, não especificam o montante de recursos que foram destinados à área pelo próprio Distrito Federal.
“Esse é um recurso que salva vidas. Nós chegamos para fazer a auditoria cívica ao posto de saúde da Estrutural e as técnicas de enfermagem de lá estavam fazendo um bazar para a população com roupas delas, usadas, para conseguir dinheiro para comprar gaze, esparadrapo, material de curativo. E o dinheiro parado na conta?”, indaga a presidente do IFC.
Funcionária do Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus), Jovita conta que já sentiu na pele os efeitos da demora para a marcação de exames e consultas na rede pública. Ela revela que, em 2015, procurou um posto de saúde e foi encaminhada para uma consulta com um neurologista. Só conseguiu ser atendida em julho de 2017. “Foram dois anos. É muito tempo, é muita desorganização. Se fosse uma coisa grave, ou eu pagava, ou eu ia padecer das consequências”, critica.
Batalha na Justiça
As extensas filas de pacientes no SUS e a dificuldade em conseguir consultas e exames têm levado cada vez mais pessoas a recorrer à Justiça para garantir os seus direitos. Só em 2016, o Núcleo da Saúde da Defensoria Pública do DF realizou um total de 21.435 atendimentos, referentes a medicamentos, tratamentos, cirurgia, internação e UTI. Entre esses casos, 2.944 resultaram em ações judiciais. Já em 2017, somente até o mês de setembro, foram 20.979 atendimentos, que culminaram em 2.022 processos.
Dentro dessa conta, já foram registradas 538 ações judiciais em 2017 referentes a medicamentos, por exemplo. No caso de cirurgias, 257 atendimentos resultaram em processos. Outro número que começou a ser computado pela Defensoria Pública é o de descumprimento de UTI, ou seja, quando o paciente já tem a liminar para ser transferido para um leito de unidade de terapia intensiva, mas o GDF não a cumpre. Só neste ano, 516 casos do tipo já foram atendidos.
A Defensoria Pública do DF foi a saída que Marli de Souza Passos, de 46 anos, encontrou para concluir o seu tratamento de radioterapia. Desempregada, ela teve a mama direita retirada por conta de um câncer em 2015. Agora, aguarda na fila do SUS para a reconstrução do seio. “Quando eu comecei a fazer a radioterapia, o aparelho do Hospital de Base deu problema, e eu fiquei um mês e 14 dias sem fazer. Tive de ir duas vezes à Defensoria para conseguir novamente. É perigoso. Se você já está fazendo o tratamento e para, o câncer volta de novo. O risco é grande”, conta ela.
Defensor público do Núcleo da Saúde do DF, Danniel Vargas acredita que a demanda pelos serviços da Defensoria, que cresce a cada mês, se deve a uma série de variáveis, entre elas o reconhecimento do trabalho prestado pelo órgão e a frustração pelos problemas encontrados no atendimento da rede pública de saúde.
“As pessoas reconhecem a eficiência do trabalho prestado pela Defensoria Pública, ficam frustradas pela ausência de acesso rápido e eficiente ao serviço de saúde pública, e procuram de imediato a Defensoria como uma tábua de salvação para o problema que elas encontram”, analisa.
“Os próprios profissionais da saúde, os médicos, enfermeiros, falam para os usuários do serviço ‘olha, eu gostaria de poder te ajudar, mas infelizmente a gente padece aqui da falta de insumos, de medicamentos, falta de condições estruturais, falta de RH. Procurem a Defensoria’”, explica Danniel.
O defensor público alerta ainda para o fato de que o aumento do número de demandas judiciais no DF é um reflexo da falta de solução desses casos por parte da administração pública. Isso porque toda a ação judicial proposta pela Defensoria é precedida por uma tentativa de resolução extrajudicial do problema. Somente após esse estágio, a Justiça é acionada.
“Se a gente sabe que a judicialização impõe maior esforço ao Estado, burocratiza o processo de atendimento, então ela não é algo bom, é um mal necessário. Só vamos à Justiça quando todas as tentativas de resolução extrajudicial são frustradas, já que o cidadão tem o direito à saúde de forma universal, igualitária e integral, sem nenhuma discriminação em relação a doentes, doenças ou tratamentos”, completa Danniel Vargas.
* Reportagem publicada originalmente na edição 27 da Revista Congresso em Foco, que começou a circular em dezembro.