Cezar Britto, Rodrigo Camargo, Yasmim Yogo e Miguel Novaes*
O Brasil, desde o ano de 2014 – ano das últimas eleições para os mandatos federais – tem vivido momentos de completa instabilidade política. Desde uma grande cisão ideológica que atingiu a sociedade, dividindo-a em dois grandes grupos antagônicos que não representavam a realidade, até os casos de protagonismos exacerbados de membros do Judiciário e do Ministério Público em causas penais, é fácil traçar um perfil de verdadeira esquizofrenia democrática no país.
Após o afastamento da presidenta Dilma do cargo, ocasionada também pelo sufocamento promovido por forças tradicionais da política brasileira, o então vice-presidente não tardou a tomar as rédeas da máquina pública e direcioná-la para um caminho antidemocrático, uma vez que demonstrou a completa alteração do programa de governo que havia sido vencedor no pleito presidencial recém realizado.
Utilizando-se do fato de ser impopular e declarar abertamente que não concorreria ao segundo mandato, pôs em pauta temas caros à população, tal como o congelamento de gastos públicos por 20 anos, o desmonte das normas protetivas do trabalho através da chamada Reforma Trabalhista e a imposição de barreiras quase intransponíveis para se alcançar o benefício da previdência social.
Aprovadas as duas primeiras questões sem maiores dificuldades no Congresso Nacional, dado o notório alinhamento da classe política com as medidas propostas, a Reforma da Previdência não seguiu a mesma linha. Pelo contrário, mesmo com a injeção de centenas de milhões de reais em emendas parlamentares, o número de votos necessário não chegou ao patamar necessário.
Ademais, junto com o fracasso da pretensa reforma previdenciária se seguiu o completo naufrágio de toda a cúpula do Partido Movimento Democrático Brasileiro (PMDB ou MDB, como a legenda gosta de ser chamada agora, como se pudesse resgatar o MDB histórico da Constituição Cidadã), a qual se viu envolvida em grandes e explícitos casos de corrupção. E, cientes da necessidade de ampliação de uma simpatia popular pela legenda, foi estratégico para o partido abafar os holofotes que cobrem a matéria impopular e focar em atender os anseios da população em geral, dizendo tomar parte na resolução da problemática da segurança pública.
PublicidadeDeste contexto surge a Intervenção Federal no Estado do Rio de Janeiro que, além de contar com um governador da mesma legenda, foi objeto constante de críticas em razão da ausência de segurança no período imediatamente anterior – o carnaval.
Portanto, tem-se assim um cenário perigoso, com um governo impopular adentrando ao seu último ano de mandato e que, justamente por essa razão, sob pena de inutilizar completamente o seu partido político, tem tomado medidas que entendem estratégicas para o ganho de popularidade. Contudo, o seu compromisso com a alteração das regras previdenciárias em razão de interesses privados não se findou, devendo toda a sociedade civil organizada estar atenta aos passos que serão tomados.
Inicialmente, importa registrar que, desde a redemocratização de 1988 – salvo pequenos intervalos – o Brasil não viveu uma concreta intervenção federal militarizada. E mais, não se viu uma intervenção que se outorgasse poder a um comandante militar para resolver questões que fossem de responsabilidade exclusiva de Governo.
Com isso, pode-se afirmar que esta questão demonstra um desafio no campo constitucional, devendo ser tratado com certa cautela e com base na melhor doutrina do constitucionalismo contemporâneo. Assim, no que tange à origem da intervenção federal, esta pode ser creditada aos textos de Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, escritos ainda no ano de 1788 e publicados no Estado de Nova York, no contexto de pós-Guerra de Independência estadunidense, onde procuravam defender a Constituição escrita no Congresso da Filadélfia do ano anterior.
Estes textos, posteriormente compilados na obra denominada de O Federalista, traduzem a necessidade de se constituir e regulamentar uma União Federal, entidade que teria a missão de coexistir com os Estados membros, ao mesmo tempo em que deveria impor determinados limites às suas liberdades.
Entre as causas concretas suscitadas pelos referidos autores, destacam-se o capítulo IX, X e XXIX, que tratam especificamente sobre a “Utilidade da união como preservativo contra as facções e insurreições” e “Das guardas nacionais”, quando os autores defendem que a união dos Estados Federados teria como responsabilidade a manutenção da ordem pública face às rebeliões que pudessem surgir. Ademais, aduzem a necessidade da existência de um aparato armado que faça a proteção interna e externa.
Isto é, segundo tais autores, que fazem parte do grupo denominado de “pais fundadores” dos Estados Unidos da América, seria necessária a consolidação de um ente que congregasse todos os Estados-membros e que teria, por seu turno, responsabilidade de utilizar de seu aparato militar para evitar as ameaças nacionais e internacionais.
As ideias por eles difundidas ganharam força e se concretizaram na aprovação da atual Constituição Americana que, em sua seção n. 8, diz:
Seção 8
Será da competência do Congresso:Regular a mobilização da guarda nacional (milícia) para garantir o cumprimento das leis da União, reprimir insurreições, e repelir invasões;
Promover a organização, armamento, e treinamento da guarda nacional, bem como a administração de parte dessa guarda que for empregada no serviço dos Estados Unidos, reservando-se aos Estados a nomeação dos oficiais e a obrigação de instruir a milícia de acordo com a disciplina estabelecida pelo Congresso.
No Brasil, por sua vez, a intervenção federal se fez presente em todas as Constituições Republicanas, aqui se excluindo, por óbvio, a Constituição Imperial que, em razão da existência do próprio Poder Moderador, dispensava o uso de tal instituto. Com o desenvolvimento do sistema Federalista, os pensadores que se preocuparam em consolidar qualquer entendimento sobre o assunto acabaram por tornar unânime e pacífico o fato de ser a intervenção federal uma medida intrínseca ao Federalismo, sendo impossível a sua abolição.
Contudo, como é de fácil conclusão, os instrumentos de manutenção da unidade federativa não devem ser utilizados de forma indiscriminada e permanente, sendo excepcionais e apenas convocáveis em casos de graves situações. Não por outro motivo que o rol de hipóteses autorizativas de intervenção federal, contido na Constituição Federal em seu art. 34, consiste em cenários limítrofes de gravidade elevada.
Em outras palavras, os períodos em que se faz possível a decretação da intervenção federal demarcam momentos de grande instabilidade política e que demandam esforços conjuntos de toda a nação para a resolução do impasse motivador de sua adoção.
Além disso, outra simples conclusão acerca dos períodos de intervenção federal, considerando tudo o que já fora anteriormente exposto, é de que o momento em que vige tal medida extrema exige cautela política, ou seja, impõe-se a restrição de tomadas de grandes decisões que possam impactar a República.
E, com vistas exatamente nesta necessidade de cautela, própria do momento e conjuntura, o Constituinte originário previu a impossibilidade de se emendar a Constituição em períodos de intervenção federal, estado de defesa ou estado de sítio, também chamados de limitações circunstanciais.
A redação do §1º do art. 60 da Constituição Federal, ao trazer a menção conjunta dos estados excepcionais da intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio, demonstra uma clara equiparação entre a gravidade das situações citadas. Sobre isso, comenta Nelson Nery Costa:
Existem limitações circunstanciais, previstas na Constituição de 1988, no §1º do art. 60, em que está expressa a vedação de que o texto constitucional possa ser emendado, na vigência de intervenção federal, de estado defesa ou estado de sítio. A intervenção da União nos Estados ocorre nas situações enumeradas nos incisos do art. 34, com o procedimento previsto no art. 36 da CF. O estado de defesa decorre da necessidade de preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza, tratada no art. 136 da CF. Já o estado de sítio decorre de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa ou, ainda, a declaração de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira, estando previsto no art. 137 da CF. [1]
Ou seja, equiparam-se as três situações excepcionais acima mencionadas de forma a preservar a higidez constitucional em momentos em que haja problemáticas de grave convulsão social, de modo a instituir que a Carta Magna da nação não possa ser modificada durante a vigência desses, muito menos quando veiculadas através de propostas obtusas, formuladas de forma antidialógica e precipitada – tal qual a PEC da Reforma da Previdência.
Ainda sobre esse assunto, o Ministro da Corte Suprema Gilmar Ferreira Mendes, em obra doutrinária, traz que “o poder de emenda também se submete a restrições circunstanciais. Proíbe-se a mudança em certos contextos históricos adversos à livre deliberação dos órgãos constituintes (…)[2]”.
A intenção do dispositivo constitucional é, portanto, resguardar não apenas o texto constitucional em seu sentido literal, mas o próprio processo de emenda constitucional, aí incluídas as discussões travadas dentro das comissões temáticas, as audiências públicas, as votações e a participação popular de forma geral.
Assim, faz-se claro para que o trâmite que almeje alterar a Constituição possa seguir de maneira hígida e dentro do devido processo legislativo constitucionalmente assegurado para a manutenção do pacto democrático e republicano vigente, necessário frisar que é devida a observância aos ditames da integralidade do art. 60 da Carta Cidadã.
A partir dessa premissa, é possível afirmar que, considerando que o Estado do Rio de Janeiro está sob intervenção federal e, consequentemente, o fato de que a União deve estar focada na resolução do grave problema que a levou a promover tal interferência, impossível que haja a calmaria republicana necessária ao processamento de qualquer Proposta de Emenda à Constituição.
Ora, se a Segurança Pública naquele Estado foi motivo o suficiente para promover a interferência das tropas federais, é dever da União, aí englobado todos os seus Poderes, manter como prioridade a situação calamitosa enfrentada por um de seus Estados-membros, em harmônico diálogo com a sociedade.
E, dessa forma, qualquer que seja o assunto que dependa de alteração constitucional, em face da limitação circunstancial instaurada, deverá ser imediatamente suspenso até que sejam cessados os motivos que levaram à extrema situação de decretação de intervenção federal, na oportunidade concretizada de forma militarizada, ou finalizar o prazo contido no Decreto. São essas as duas únicas formas de interromper a vigência de um Decreto interventivo, de acordo com a Constituição.
Sendo assim, no caso atualmente presenciado, mostra-se completamente descabida a pretensa tentativa de suspensão momentânea do Decreto de intervenção para a votação da PEC n. 287, uma vez que, acaso tal situação venha a se efetivar, estaria viciada de manifesta inconstitucionalidade.
Explica-se. Conforme dito acima, a lógica constitucional encaminha para a conclusão de que não apenas a promulgação da Emenda Constitucional está suspensa, bem como toda e qualquer movimentação das propostas de emendas. Portanto, a intervenção federal estaciona todas as discussões em comissões e audiências públicas, elementos necessários e recomendáveis para que haja uma tramitação democrática das propostas.
Desta forma, é impossível que haja o processamento da PEC no momento de uma suposta suspensão do Decreto interventivo, dado ser impossível se votar algo que não foi discutido e aprovado nas comissões de ambas as casas do Congresso Nacional. Ademais, vale ressaltar que a aprovação de emendas constitucionais depende da votação das duas Casas Legislativas, em duas sessões de votação, por maioria absoluta. Ou seja, para que houvesse a aprovação de qualquer alteração constitucional seria necessária a suspensão da intervenção federal, no mínimo, por quatro vezes.
Contudo, também seguindo a interpretação constitucional adequada, tem-se que o Decreto interventivo, que deve ser editado já com a sua vigência devidamente estabelecida, apenas pode ser suspenso antes do prazo nas hipóteses em que se cesse a situação que a tenha motivado, como alude o § 4º, art. 36, da Carta Maior.
Ou seja, caso a situação calamitosa no Rio de Janeiro não se modifique nos próximos meses, o Governo Federal está impedido de suspender o Decreto que editou, não sendo razão suficiente o mero planejamento de Governo de se alterar a Constituição. E, por sua vez, muito menos razoável e ainda mais inconstitucional a ideia de se promover todos os debates sob a égide da intervenção e, ademais, suspender o Decreto para as quatro votações.
Logo, somados todos os elementos trazidos, demonstra-se ser totalmente contrária à Carta Política a ideia aventada pela atual gestão do Governo Federal em provocar um hiato temporal na vigência do Decreto a fim de promover as vontades políticas de ocasião e, com isso, promover alterações estruturais no sistema constitucional.
Nem mesmo a disposição expressa na Constituição do Estado do Rio de Janeiro (art. 111, § 3º) cujo texto veda sua alteração durante a vigência de Decreto interventivo seria necessária. Isto porque a supremacia constitucional da República prevalece sobre a autonomia dos entes federativos, restringindo-a, sob a prevalência da vontade soberana do constituinte originário e suas normas centrais.
Certo é que, durante o período pós-Constituição de 1988, em plena égide de consolidação de uma social democracia, vivemos uma turbulência institucional e pela primeira vez nesse período uma ruptura drástica das arestas do programa democrático de estabelecer uma justiça social dentro de um sistema capitalista. Dentro da busca do Estado de Bem-Estar Social, através da manifestação das entidades da sociedade civil incluindo o sistema confederativo sindical, da regulação econômica e na expectativa de uma distribuição de renda mais igualitária, cinge-se o processo democrático em detrimento da classe trabalhadora.
Com efeito, quanto ao assunto proposto, muito embora seja uma prerrogativa do chefe do Poder Executivo a decretação do instituto administrativo da intervenção federal, com base no art. 84, caput, inciso X, da CF/88, há um nítido descompasso entre os Poderes e a plena independência e harmonia mútua, como preceituava a secular teoria de Montesquieu. De um lado os institucionalizados como o Executivo e o de controle político – Legislativo -, além do Judiciário que se utiliza da jurisprudência comodista e resignada quando aduz a não interferência no mérito discricionário da Administração. E, por outro lado, o controle social do povo e de suas entidades representativas.
A ruptura democrática e de todo um sistema sócio-organizativo veio com um rompimento, ainda mais drástico, que foi com o diálogo social. Posicionou-se uma grande barreira que emperra o trato cooperacional entre sociedade civil e Governo. Não só pela antipopularidade absurda do então presidente atual, exposta nas pesquisas oficias do gênero, mas também pela arbitrariedade no manejo da política pública aqui tratada, a de segurança pública.
Já que estamos tratando de intervenção federal, de reflexo direto nas políticas adotadas no âmbito da segurança pública estadual e federal, é preciso salientar que o próprio artigo 144 da Constituição retrata o tema como dever do Estado e direito de todos. Contudo, traz que há responsabilidade de todos envolvidos na elaboração e destinação das políticas públicas relacionadas à segurança.
É um retrocesso não chamar as organizações populares, responsáveis em estabelecer a coesão social principalmente nas comunidades da periferia, para diálogo no sentido de fiscalizar e manejar proposições que garantam o cumprimento de normas fundamentais e a dignidade da pessoa humana como valor central das ações do Governo. Certamente, sem se desvencilhar do propósito da segurança pública. Porém, com um viés muito mais humanista do que patrimonialista.
Diante de todo o exposto, é possível afirmarmos, sem nos basearmos na discricionariedade administrativa acerca da necessidade ou não da intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, que a situação fática sobre a qual se amparou o Governo Federal para publicar o Decreto faz com que impossibilite a suspensão ou interrupção da norma federal. Somente em duas possibilidades o Decreto deixa de viger. Ou por cessação dos motivos da intervenção ou pelo decurso do prazo estabelecido no Decreto. Qualquer outra manobra para interferir na vigência será, juridicamente, inconstitucional.
Nenhuma garantia constitucional e fundamental no tocante à liberdade humana poderá ser restrita ou impedida de se exercer, seja de qual forma for. O ato de intervenção é de natureza essencialmente administrativa e, como política governamental, há de se obedecer aos princípios centrais da Constituição Federal.
Razoável, nesses termos, que não deixe de coexistir o protagonismo da sociedade na busca de cooperação mútua com o Estado, na linha do controle social a ser exercido como participação popular na adoção de políticas públicas impactantes na realidade e cotidiano da população periférica, principalmente, como é o caso da intervenção no Estado do Rio de Janeiro.
* Rodrigo Camargo é advogado graduado pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Pós-graduando em Direito Sindical no Instituto de Educação Superior de Brasília – IESB e Coordenador do Núcleo de Administrativo-Cível do Escritório Cezar Britto Advogados Associados.
* Yasmim Yogo é advogada graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe – UFS, Pós-graduanda em Direito Sindical no Instituto de Educação Superior de Brasília – IESB e integra a equipe de advogados do escritório Cezar Britto & Advogados Associados.
* Miguel Novaes é advogado graduado pela Universidade de Brasília – UNB e integra a equipe de advogados do escritório Aragão & Ferraro Advogados.