Erich Decat
Enquanto caminha numa via para frear a edição das medidas provisórias, o Congresso avança em outra frente para aumentar o poder do Executivo de legislar por MP. Ainda praticamente ignorado pelos parlamentares, um dispositivo da proposta de reforma tributária autoriza o governo a aumentar imposto por medida provisória. Hoje, com exceção de um seleto grupo de tributos, os chamados impostos regulatórios, toda mudança nas alíquotas depende da aprovação de projeto de lei pelo Legislativo.
O texto da proposta de emenda à Constituição (PEC 233/08) da reforma tributária permite ao governo recorrer a MP para elevar a alíquota do Imposto sobre Valor Adicionado Federal (IVA-F), que será criado com a unificação de quatro tributos federais, todos de natureza arrecadatória, o que é expressamente proibido pelas atuais regras. São eles: a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), o PIS, a Cide-Combustíveis e a Contribuição Social do Salário Educação.
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A possibilidade de o governo aumentar o novo imposto sem a discussão que teria se a proposta fosse enviada na forma de projeto de lei recebe críticas de especialistas da área tributária e de parlamentares da oposição. Eles alegam que a PEC, que está para ser votada em comissão especial da Câmara, dá uma verdadeira “carta branca” para o Executivo fazer o que bem entender. Já os governistas argumentam que a iniciativa é importante para evitar a perda de arrecadação com eventuais atrasos decorrentes da tramitação dos projetos de lei.
“Como está, o governo poderá aumentar o IVA quando quiser. Na verdade, não teremos simplificação, mas a criação de um novo imposto. Se o governo quisesse simplificar, ele faria isso por uma lei ordinária ou até mesmo por uma MP”, disse ao Congresso em Foco o especialista em direito tributário Ives Gandra da Silva Martins.
“O governo ainda não estabeleceu quais serão as alíquotas do novo IVA, porque é um ponto polêmico e que vai atingir muitos setores. Vai haver aumento da carga tributária com a criação do IVA”, acrescentou.
Cheque em branco
O receio de Ives também é compartilhado pelo deputado Mussa Demes (DEM-PI), integrante da comissão especial e relator das propostas de reforma tributária que passaram pela Câmara entre 1997 e 2003. Ele vê com desconfiança tamanha liberdade prevista para o Executivo tributar. A tendência com a mudança, segundo ele, é ampliar ainda mais o peso da carga tributária no país. “Essa é a preocupação de todos nós. Praticamente é um cheque em branco para o governo”, criticou.
Apesar da crítica, Demes ressalta que seu partido – que conta com outros dois parlamentares na comissão – ainda não fechou questão sobre o assunto. “Está sendo analisado dentro do DEM. Vamos nos posicionar no momento oportuno. Não temos uma definição ainda, mas no momento a preocupação é muito grande e, quando você está em dúvida, a tendência é ficar contra”, disse. “Pelo menos até o momento”, emendou.
A crítica também é feita pelo coordenador da Comissão de Estudos para a Reforma Tributária do Conselho Federal de Contabilidade, José Maria Martins Mendes. “Para nós, o IVA só deve ser aumentado por projeto de lei. É necessário que se passe por uma votação no Congresso. O IVA será criado exclusivamente com fins arrecadatórios, não é um imposto regulatório como o governo está querendo”, criticou Mendes.
Os chamados impostos regulatórios, como diz o próprio nome, são aqueles que têm, além da função de arrecadar, a tarefa de regular as atividades econômicas. A rigor, são eles: o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), o Imposto sobre operações com Produtos Industrializados (IPI) e o Imposto sobre Importação e Exportação (II e IE). Apenas esses podem ser aumentados por decreto do Executivo ou por medida provisória.
Já os tributos arrecadatórios, como os que originarão o IVA-F, precisam ser aprovados pelo Congresso, na forma de projeto de lei, já que têm natureza unicamente fiscal.
Questão de necessidade
Para o relator da PEC na comissão especial, deputado Sandro Mabel (PR-GO), garantir ao Executivo a prerrogativa de aumentar a alíquota do novo imposto por medida provisória é uma necessidade.
“O IVA Federal vai precisar, durante um período, de ter uma transição para que ele possa ter uma mudança mais rápida com uma anterioridade menor, até porque, senão, eles calibram a alíquota muito alta e depois não tem como descalibrar”, justificou à reportagem.
Mabel descarta eventuais abusos e a possibilidade de o governo recorrer periodicamente a medidas provisórias para elevar a tributação a fim de ajustar sua arrecadação. “De todo jeito, vai existir uma noventena. Mas, no começo, durante um ano ou dois, terão de ser feitos alguns ajustes. De uma maneira geral, como entendemos que a carga tributária já está no seu limite, vamos colocar a instituição de quase todos os impostos ou modificação deles por lei complementar”, assegurou.
A noventena, fixada pela Constituição, corresponde ao período de 90 dias, a contar de sua publicação, para que uma lei que cria ou aumenta tributos entre em vigor, isto é, para que eles comecem a ser cobrados. A idéia de manter esse prazo na PEC, porém, não partiu do governo. Mas da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), onde o texto foi alterado antes de ser aprovado há dois meses.
Princípio excluído
Apesar de manter esse período, a reforma tributária exclui o chamado princípio da anterioridade para o IVA-F. Esse princípio estabelece que nenhum tributo poderá ser cobrado no mesmo exercício financeiro em que tenha sido publicada a lei que o instituiu ou o aumentou.
Mussa Demes lembra, no entanto, que há um impasse na introdução da noventena na PEC pela CCJ. É que, na forma de MP, o prazo para a elevação do tributo começaria a contar da publicação da norma no Diário Oficial da União, e não em 90 dias.
Essas ferramentas jurídicas têm como finalidade assegurar ao cidadão o conhecimento prévio dos encargos e a possibilidade de uma melhor administração do orçamento. A justificativa do governo para excluir o princípio da anterioridade é feita no texto apresentado ao Congresso pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega.
“Como a maior parte da receita do IVA-F provém das extintas contribuições para o PIS e Cofins, que estão sujeitas ao regime de noventena e não à anterioridade, propõe-se que o mesmo grau de restrição atualmente vigente para estas contribuições seja aplicado ao IVA-F”, diz Mantega em trecho da PEC.
Para Ives Gandra, o argumento do governo contraria artigos invioláveis da Constituição. “Isso é errado, pois estamos falando de uma cláusula pétrea que não pode ser modificada nem por uma PEC”, critica o especialista em direito tributário.
Já o ex-secretário da Receita Federal Osiris Lopes Filho, professor de Direito Tributário da UnB, considera que, ao propor o fim da anterioridade, o Executivo tem como principal objetivo assegurar um retorno arrecadatório imediato caso a reforma tributária não dê o retorno esperado pelo governo.
“Esta reforma, além de mal-feita, está tecnicamente cheia de ‘seguros’ em volta. Ou seja, o objetivo é fazer as alterações com garantia de eficácia imediata. Por isso, querem criar esses mecanismos”, afirmou o tributarista, um dos mais fervorosos críticos da proposta do governo.
Concessão ao Congresso
Para o deputado Virgílio Guimarães (PT-MG), integrante da comissão especial e ex-relator da reforma tributária, o Executivo poderia até mesmo elevar o IVA-F por decreto, sem precisar ouvir o Congresso. Ao admitir a necessidade de se editar uma MP, afirma o petista, o governo está, na verdade, fazendo uma concessão ao Legislativo.
O deputado não leva em conta que os tributos unificados pelo IVA-F são classificados hoje como arrecadatórios e, por isso, devem respeitar às regras, ainda em vigor, da noventena e da anterioridade. E que, nesse caso, teriam de ser tratados por projeto de lei. Virgílio apóia o texto do governo que altera a Constituição e defende que os impostos arrecadatórios e regulatórios tenham o mesmo tratamento.
“Por decreto é pior, porque nem passa por aqui. Seria uma solução também, mas a medida provisória é menos imperial, menos impositiva. Eu acho que essa solução é correta, adequada, ela preserva sobretudo o bolso do contribuinte, porque o desequilíbrio fiscal jogaria o país em uma recessão”, avaliou.
“A implantação de um tributo novo, suas alíquotas, instruções normativas, todos os paradigmas legais precisam ser ajustados. Ou haveria uma espécie de lei delegada, como é comum, ou deveria se permitir fazer um tipo de ajuste por decreto ou por MP, o que é imprescindível, sobretudo para impedir um aumento da carga tributária”, ressaltou.
Na avaliação de Virgílio, não há qualquer sustentação na crítica de que a proposta do governo viola a Constituição. “Essa disposição de querer torcer o nariz para tudo, eu não participo, até porque quem perde é o contribuinte. Isso é uma firula jurídica que serve para muitos debates aqui nos corredores da Câmara. Nesse caso da transição para o contribuinte, não serve para nada, serve para aumentar a carga”, afirmou. “Essa conversa de cláusula pétrea serve para enriquecer escritório de advocacia, não é cláusula pétrea nada. Precisamos ter uma reforma tributária aplicável”, concluiu.
Votação à vista
De acordo com o relator da comissão que analisa o mérito da proposta, o relatório final será apresentado no próximo dia 23. Dos 24 integrantes do colegiado, 15 fazem parte da base aliada do governo. Caso a proposta – que está apensada à PEC 31/2007 e que conta com 485 emendas – seja aprovada na comissão, ela seguirá para o plenário da Casa, onde precisará da aprovação de 308 deputados, em dois turnos. Só então o texto será encaminhado ao Senado.
Outra substancial mudança prevista pela proposta do governo é a unificação das 27 legislações estaduais do ICMS. O tema divide as bancadas estaduais por causa da pressão dos governadores que se valem da guerra fiscal para atrair investimentos para os seus estados.
Mas é no apoio dos governadores que Sandro Mabel aposta suas fichas. Em entrevista ao Congresso em Foco, o relator adiantou que pretende “blindar” o Fundo de Equalização de Receitas (FER), que visa a ressarcir aos estados por perdas decorrentes da instituição do novo ICMS. O fundo deve ser formado por 1,8% da arrecadação dos impostos federais.
Garantia aos governadores
O objetivo da blindagem, explica o parlamentar goiano, é evitar que os recursos sejam desviados de sua função, assim como acontece hoje com a Lei Kandir. A lei isenta do ICMS os produtos e serviços destinados à exportação e causa perdas importantes na arrecadação de impostos estaduais. O repasse dos recursos desse fundo é fonte permanente de disputa entre os governadores e o governo federal.
“Estou assegurando aos estados que vou criar esse mecanismo para que eles tenham de onde sacar, como sacar e solucionar uma série de travas que existe quanto a isso. Para garantir o repasse dos recursos, quero ir mais longe. Caso o Fundo não seja suficiente e o estado ainda precise sacar, ele poderá sacar de uma rubrica orçamentária que ainda será definida. O meu compromisso com os estados é de que, se eles ajudarem a aprovar a reforma, esse assunto eu escrevo junto com eles”, afirmou (leia mais).