Cláudio Castello de Campos Pereira*
Em 1922, um pequeno grupo de tenentes, insatisfeitos com o governo, decidiu bombardear o Rio de Janeiro numa tentativa de promover reformas. Esse episódio, conhecido como “Revolta do Forte de Copacabana”, mais se assemelha a uma cena de comédia pastelão devido à sua execução desorganizada e ao resultado ineficaz. A tentativa audaciosa, porém, mal planejada, resultou em confusão e uma rápida repressão pelas forças armadas, destacando-se como um momento peculiar na história brasileira onde a linha entre realidade e ficção pareceu particularmente tênue. Mas o passado ecoa e seus fantasmas, permanecem.
Escrito meros dias após uma série de eventos que parecem arrancados das páginas de uma comédia satírica, este artigo pretende auxiliar os historiadores do próximo século sobre uma tentativa de golpe de Estado tão bizarra quanto mal executada, protagonizada pelo ex-presidente Bolsonaro e seu eclético grupo de seguidores. Com suas ações descoordenadas tal como a dos tenentes de 22, contribuíram para uma visão caricata das instituições envolvidas, incluindo as Forças Armadas. Este relato, concebido não apenas como um contribuição histórica sobre os acontecimentos mas também como uma contribuição ao roteirista do Brasil – um país onde a realidade frequentemente flerta com o absurdo – almeja fornecer material tanto para entretenimento quanto para reflexão. Delineando uma série de episódios que, embora graves em suas intenções, revelaram-se um enredo tragicômico de falhas e equívocos, e, infelizmente, colocou em xeque a solidez e a seriedade das desvirtuadas Forças Armadas diante dos olhos da nação e do mundo.
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No coração dessa tentativa de golpe, encontrava-se o ex-presidente Bolsonaro, que, ao lado de seu círculo mais próximo, desencadeou uma série de eventos que mais pareciam pertencer ao roteiro de uma comédia de erros do que à realidade política de uma nação. Cada passo dado por esse grupo parecia ser meticulosamente desenhado para superar o anterior em termos de desorganização e falta de sagacidade, configurando um espetáculo digno de um circo de absurdos. Os atores principais, em sua ânsia por concretizar um plano maléfico, acabavam incessantemente tropeçando em suas próprias maquinações. Ao mesmo tempo, uma “meia dúzia de loucos fardados” muito bem articulados conseguia, com suas ações e palavras, arrastar as Forças Armadas para o centro desse espetáculo, submetendo uma instituição de respeito e disciplina a ser ridicularizada nacional e internacionalmente. Aqueles que riem diante desse espetáculo grotesco têm toda a razão, pois a incompetência exibida foi tão agressiva que ultrapassou o auge da tolice, transformando o cenário político em um espetáculo de dimensões inéditas, mesclando elementos de humor e drama.
Um dos episódios mais emblemáticos dessa saga de desacertos foi uma reunião no dia 5 de julho de 2022, capturada em vídeo e mais tarde divulgada pelo Supremo Tribunal Federal, que expõe o ex-presidente e sua trupe ministerial em plena articulação de um plano que transbordava desespero e desconexão com a realidade. Na ocasião, com a participação de figuras notórias como Anderson Torres, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira, entre outros, Bolsonaro fazia malabarismos retóricos, tentando convencer seus ministros da necessidade de emitir uma nota conjunta que questionasse a integridade das eleições. O teor das conversas, recheado de teorias conspiratórias e acusações infundadas contra adversários políticos, revelava não apenas a fragilidade do plano, mas também a desconexão com os princípios democráticos e, de forma mais lamentável, insinuava um desvirtuamento do papel das Forças Armadas, arriscando sua imagem perante a sociedade ao associá-las a manobras políticas questionáveis.
A saga teve início com Bolsonaro, autointitulado “Grande Mestre”, empunhando uma proposta de golpe tão fantástica quanto inócua, revelando-se com a eficácia de um guarda-chuva em meio a um tornado. Esse documento, entregue com grande cerimônia, acabou por ser um emblema de futilidade, destacando-se mais por sua ousadia imaginativa do que por qualquer semblante de aplicabilidade prática. Neste contexto, o papel das Forças Armadas foi involuntariamente arrastado para o olho do furacão, visto por muitos como um potencial executor de um plano tão frágil quanto irrealizável, levantando questionamentos sobre a necessidade de repensar e blindar esses agentes públicos contra a manipulação e o descrédito institucional.
PublicidadeÀ medida que a trama se desenrolava, diversos núcleos de ação foram estabelecidos, cada um se atrapalhando mais do que o último, em empreendimentos que iam desde a propagação de desinformação até vigilâncias tão sutis quanto um palhaço em um velório.
Dentre esses, um grupo dedicado à “inteligência paralela” se destacou, cujos esforços de espionagem fariam os espiões mais ineptos parecerem mestres da discrição por comparação. Este cenário bizarro, infelizmente, também refletia sobre as Forças Armadas, cujos membros foram vistos por alguns como participantes nesse teatro do absurdo, minando a confiança e o respeito que a sociedade deveria nutrir por essa instituição.
O apogeu dessa tragicomédia se manifestou na operação “Tempus Veritatis” da Polícia Federal, que poderia ser traduzida como “A Hora da Verdadeira Insensatez”. A operação expôs o profundo abismo de desespero no qual os conspiradores haviam se atolado, desvendando a magnitude de um fiasco orquestrado com uma lista de mandados que mais parecia o casting para um espetáculo destinado ao fracasso.
Entre os momentos mais memoráveis, destacou-se uma reunião no Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro, rodeado por sua equipe, promovia ideias falsas sobre fraude eleitoral. Em outra ocasião, o general Heleno propôs uma reviravolta pré-eleitoral com uma seriedade que rivalizava com a de um palhaço em um funeral, sugerindo “soluções” tão viáveis quanto tentar apagar um incêndio com álcool.
O ápice do ridículo foi atingido com a revelação de conversas sobre o monitoramento de Alexandre de Moraes, referido por apelidos infantis, e discussões sobre ajustes no decreto golpista com a casualidade de quem compartilha receitas culinárias.
Longe de constituir uma ameaça séria ao estado democrático, esta tentativa de golpe evoluiu para um espetáculo de incompetência. O legado deixado por essa trupe desastrada e desprovida de sagacidade foi um manual prático de como não realizar um golpe de Estado, escrito nas páginas da história com as cores vivas do ridículo e da ironia.
No centro desse espetáculo de erros, ainda houve o documento encontrado apela à autoridade de Aristóteles de maneira tão fora de contexto que faria o próprio filósofo revirar-se no túmulo. Citando o “princípio do Iluminismo” e a resistência a “leis injustas”, o texto tenta justificar uma ruptura constitucional com ares de legitimidade filosófica, algo que poderia ser considerado hilário, não fosse o contexto alarmante em que se insere. O uso de expressões como “jogando de forma incondicional dentro das quatro linhas”, emprestadas diretamente do léxico de Bolsonaro, revela não apenas uma desconexão com a realidade, mas também uma tentativa desesperada de mascarar um golpe de Estado com um verniz de legalidade constitucional.
As referências a Aristóteles e ao Iluminismo, empregadas para embasar argumentos a favor do estado de sítio e da garantia da lei e da ordem, são exemplos claros de como os conspiradores tentaram vestir suas intenções autoritárias com uma capa de legitimidade intelectual. Esse desvirtuamento grotesco do pensamento filosófico, entretanto, não faz nada além de expor a fragilidade intelectual e moral do plano, transformando-o em alvo de sátira.
A menção a generais e altos escalões militares como defensores da ruptura, juntamente com episódios de insultos e ordens para cercar a casa de um comandante do Exército tachado de “cagão” por sua hesitação em aderir ao plano, apenas reforça a urgência em repensar e blindar as Forças Armadas contra tais desvirtuamentos. A participação desses militares, seja por ação ou omissão, no esquema golpista não apenas mancha a reputação de uma instituição historicamente comprometida com a defesa do país, mas também coloca em questão seu papel dentro da sociedade e da democracia brasileira.
Este documento, com suas propostas risíveis e justificativas filosóficas mal aplicadas, serve como um emblema da desconexão e da desesperança que permearam a tentativa de golpe. A operação “Tempus Veritatis” da Polícia Federal, que desvendou esse e outros planos, não apenas revela a amplitude das conspirações, mas também destaca a comicidade involuntária com que foram executadas.
Em um capítulo adicional digno de nota, o tenente-coronel Guilherme Marques Almeida acrescentou uma camada extra de humor negro ao narrativa ao desmaiar com a inesperada chegada da Polícia Federal. Este episódio, que flertou com o drama e a comédia, simbolizou não apenas o desespero e a fragilidade dos conspiradores, mas também serviu como uma poderosa metáfora da instabilidade de um plano edificado sobre as areias movediças da desinformação e da bravata, ao mesmo tempo em que lançava uma sombra sobre a capacidade das Forças Armadas em se distanciar de teatralidades políticas e manter sua dignidade e respeito perante a nação.
A operação policial, nomeada com um título que evocava um chamado ao juízo final para os implicados, revelou não somente a amplitude das tentativas de subverter a ordem democrática, mas também a natureza cômica na execução desses planos. Entre documentos que mais pareciam esboços de uma peça de teatro mal concebida, reuniões secretas dignas de inveja dos roteiristas de sitcoms, e agora, desmaios dramáticos ao estilo das telenovelas, o golpe se desdobrou mais como uma paródia de tentativa de subversão do que como uma verdadeira ameaça à democracia.
O que se pretendia ser uma demonstração de força revelou-se uma coletânea de fraquezas, onde até os supostamente mais preparados cederam sob o peso esmagador da realidade. A cooperação subsequente do tenente-coronel com os procedimentos de busca, após recuperar-se do choque inicial, talvez represente o único lampejo de sensatez em um episódio repleto de decisões duvidosas e ações imprudentes.
Ao final, este episódio adiciona uma nova dimensão à tentativa de golpe: a constatação de que, mesmo aqueles treinados para manipular percepções e realidades através de operações psicológicas, encontram-se desarmados e expostos diante da implacável marcha da justiça. O desmaio do tenente-coronel Almeida não é apenas um evento isolado, mas um símbolo eloquente do colapso moral e estratégico de uma operação condenada ao fracasso desde seu início. E assim, a saga dos golpistas prossegue, oferecendo lições valiosas sobre a importância da integridade, da aderência à realidade e do respeito incondicional às instituições democráticas, mesmo que através dos seus mais flagrantes e involuntários equívocos.
Após um exame detalhado e irônico da tentativa de golpe de Estado, torna-se essencial uma reflexão séria sobre suas consequências e a urgente responsabilização dos implicados. A Operação Tempus Veritatis, realizada pela Polícia Federal, expôs não apenas as tentativas malogradas de subverter a democracia, mas também o envolvimento deliberado de altos escalões militares nesse processo. Essas descobertas mancham a reputação das Forças Armadas, reavivando memórias de um período autoritário superado e alertando para a vulnerabilidade da democracia frente a ameaças internas.
A atuação de alguns militares, nostálgicos por um regime de exceção, não só questiona a adesão das Forças Armadas aos princípios democráticos, mas também demanda uma ação decisiva e clara do judiciário e do sistema político nacional. É vital responsabilizar os envolvidos, especialmente aqueles em posições de comando, para reiterar o compromisso do Brasil com a democracia e o Estado de Direito, garantindo que tais atos sejam julgados com transparência e severidade.
Este episódio sublinha a necessidade de vigilância e ação constante das instituições brasileiras contra qualquer ameaça autoritária, reafirmando a importância de defender a liberdade e a democracia. A responsabilização dos que atentaram contra a ordem democrática, particularmente generais e militares de alta patente, é crucial para assegurar a integridade da democracia e do Estado de Direito no Brasil, convocando todas as instituições e a sociedade a um compromisso firme com os valores democráticos e constitucionais.
Além do mais, a divulgação do vídeo da reunião de 5 de julho de 2022 serve como um microcosmo da desordem estratégica que permeou essa tentativa de golpe. As declarações do ex-presidente, ao mesmo tempo em que negavam a intenção de usar a força, paradoxalmente, instigavam ações que claramente subvertiam a ordem democrática. Essas contradições, longe de oferecerem uma estratégia coesa, espelhavam a confusão e a falta de um plano viável, revelando um entendimento deturpado do papel das Forças Armadas e das instituições democráticas no país.
A insistência em questionar a integridade do processo eleitoral, sem provas, e o apelo à desinformação como ferramenta política, não apenas subestimaram a inteligência do eleitorado brasileiro, mas também colocaram em xeque a credibilidade das instituições nacionais. Este comportamento, aliado às tentativas desajeitadas de mobilizar apoio dentro das Forças Armadas e entre os ministros, destacou uma tentativa desesperada de legitimar uma narrativa sem fundamento, sublinhando a necessidade de repensar o papel dessas instituições em um contexto democrático, a fim de protegê-las de serem instrumentalizadas por uma “meia dúzia de loucos” muito bem articulados.
A reação da sociedade civil e das instituições democráticas a esses eventos foi um testemunho da resiliência do tecido social e democrático do Brasil. A mobilização em defesa da democracia, o escrutínio da mídia e a resposta assertiva do judiciário demonstraram a vitalidade de uma nação que, apesar dos desafios, permanece comprometida com seus valores fundamentais.
Neste contexto, o papel da Polícia Federal e do Supremo Tribunal Federal na investigação e na exposição das atividades ilegais e anti-democráticas foi fundamental. A Operação Tempus Veritatis não apenas desvendou a trama mal concebida, mas também reiterou a importância do Estado de Direito e da separação de poderes como pilares da democracia brasileira.
A tentativa de golpe, com todas as suas falhas e contradições, serve como um lembrete sombrio das ameaças que pairam sobre a democracia. No entanto, também reafirma a força e a resiliência das instituições democráticas do Brasil. A saga dos golpistas, embora marcada pela incompetência e pelo ridículo, deve ser lembrada não apenas como um episódio de falha política, mas como um chamado à vigilância constante em defesa da democracia e da liberdade.
A responsabilização dos envolvidos é um passo crucial na cura das feridas abertas por essa tentativa de subversão. O Brasil, através deste episódio, enfrenta o desafio de reafirmar seu compromisso com a democracia, garantindo que os valores de justiça, liberdade e respeito às instituições prevaleçam sobre qualquer tentativa de desestabilização política. Assim, o país não apenas supera um capítulo lamentável de sua história, mas também se fortalece, reiterando seu lugar como uma democracia vibrante e resiliente no cenário mundial.
A lição aprendida, embora repleta de ironia e ridículo, é um chamado à vigilância constante em defesa dos valores democráticos, assegurando que a justiça prevaleça sobre tentativas de desestabilização política, e reiterando o compromisso do Brasil com a liberdade, a justiça e o respeito às instituições.
*Cláudio Castello de Campos Pereira é advogado em São Paulo. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), é especialista em Direito Civil pela Fundação Getúlio Vargas e em Gestão e Controle Social de Políticas Públicas pela Escola de Gestão e Contas Públicas (EGC), vinculada ao Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCMSP)