A ideia em um segundo A aprovação da PEC dos Precatórios envolveu uma “tramitação criativa” no Congresso Nacional, com o seu fatiamento e promulgação do texto comum aprovado pelas duas Casas, e a transformação do texto restante em nova proposição, apensada a outra PEC, para evitar a necessidade de novamente passar por todos os trâmites. A inovação legislativa é ainda mais grave em se tratando do conteúdo da proposta. |
Gambiarras legislativas
No filme “A Fantástica Fábrica de Chocolates”, crianças do mundo inteiro disputam um bilhete dourado para visitarem pessoalmente o lugar em que as guloseimas eram produzidas. Não há registro de histórias que contem sobre crianças disputando visita a fábricas de salsichas. Antes, como disse Bismarck, estadista alemão, é melhor passar longe delas, tanto quanto longe das fábricas de leis, que seriam suas análogas. A questão é que a forma como as salsichas são feitas importa apenas aos que as apreciam. Mas a forma como as leis são feitas afeta a todos os membros da sociedade.
Leia também
O desfecho da PEC dos Precatórios, por sua vez, ganhou seu bilhete para figurar entre os exemplos dessas gambiarras que se aplicam no processo de feitura legislativa, que lhe rende a alcunha de gêmeo das salsichas. Resumidamente: no bicameralismo brasileiro, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) depende da aprovação das duas casas. Alterações em uma fazem com que tenha que voltar para a outra. Ou seja, se se tratasse da compra de um carro, Câmara dos Deputados e Senado Federal precisariam estar de acordo quanto ao fabricante, ao modelo, ao ano de fabricação, etc. No caso dos Precatórios, acordou-se a marca dos pneus e o tipo do motor. Separou-se o resto, deixando para ser comprado em outro momento.
Ressalte-se que se está tratando de um dos temas mais importantes do Poder Legislativo: o Orçamento público. O poder de decisão com relação ao Orçamento é um baluarte histórico da autoridade legislativa e marcou, no Reino Unido, o primeiro sistema democrático representativo moderno. O exercício do poder orçamentário sustenta todas as outras decisões legislativas e é um dos importantes reguladores do equilíbrio entre os Poderes.
Incerteza e instabilidade
O vai-e-vem da PEC dos Precatórios foi acompanhado pelo vai-e-vem do mercado financeiro, simbolizado sinteticamente pelo índice Ibovespa. Essa entidade abstrata, o mercado, composta de miríades de investidores, faz seus cálculos buscando ampliar ao máximo a previsibilidade – afinal, ser capaz de prever um resultado futuro é elemento determinante nas decisões alocativas no presente. Quando aumenta a incerteza, o sistema fica instável. No caso, a colocação em suspenso do marco constitucional que rege as principais balizas orçamentárias do setor público é pura gasolina na fogueira da instabilidade.
Há expectativas que dizem respeito ao que o Congresso deveria fazer. Nesse caso, pode-se interpretar que o mercado sinalizou que entendia que o marco constitucional das finanças públicas, sintetizado na noção do teto de despesas, não deveria ser mexido, ainda mais precipitadamente. Há outras expectativas que dizem respeito ao como o Congresso deveria fazer. Clareza, legitimidade, segurança jurídica – são elementos a alimentar essa ordem de expectativas. A famosa legitimidade via procedimento enfatizada por tantos teóricos que abordam o processo decisório em democracias.
O que se viu foi completamente diferente, com a adoção de uma solução marota para a promulgação do mínimo necessário da PEC que pudesse garantir a folga que o governo tanto pleiteava, deixando-se o resto para um depois que não se tem como saber quando nem como.
Qual é a importância dos procedimentos?
As regras (ou procedimentos) garantem uma definição mínima de democracia, pois estabelecem o como do processo democrático, isto é, o caminho a ser percorrido para se chegar à decisão política. A Constituição Federal, em seu art. 5º, prevê como direito fundamental o devido processo legal, observado o princípio do contraditório. Tal princípio fundamental traslada-se ao âmbito do processo legislativo sob a forma das regras regimentais, que propiciam, no seu modo próprio, o exercício do contraditório (debate da matéria na Casa Legislativa, com possibilidade de manifestação dos representantes dos diversos partidos, consubstanciando-se assim outro princípio fundamental da República Federativa do Brasil – o pluralismo) e a observância de um devido processo, o que inclui regras estáveis e vigentes e conhecidas a priori.
O Direito moderno retirou da suposta autoridade divina dos reis o fardo da sua validade, deslocando-o para os procedimentos formais de instauração do Direito, por meio dos quais os pressupostos universais são institucionalizados. Vale destacar aqui um trecho de Norberto Bobbio, em sua obra O Futuro da Democracia – uma defesa das regras do jogo: “O único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias e fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos”.
A compulsividade da violação das regras fiscais
O Brasil tem se mostrado compulsivo em criar regras fiscais para violá-las em seguida. Como nos programas de recuperação viciados, o país pega uma ficha a cada dia, para poder contar quantos dias ficou sem ter uma recaída. Na terapia individual, o símbolo é forte e ajuda a conduzir o processo de cura. No caso do país, o símbolo aponta para o desarranjo permanente de um Estado que não sabe nem como aprovar uma adequada legislação concernente às suas contas.
A Lei de Responsabilidade Fiscal foi um marco importante e fundamental para o sucesso do Plano Real, o que muitas vezes é esquecido. Houvesse permanecido e sido obedecida em suas principais diretrizes, não haveria necessidade de qualquer regulamentação adicional. O que se viu, contudo, nos seus vinte e um anos de existência, foi que ela não inaugurou, de fato, um novo século nas finanças públicas brasileiras. Desobedecida, simplesmente, ou alterada formalmente, a LRF segue exangue, sujeita ao socorro de transfusões esporádicas – como a criação do teto dos gastos, por exemplo. Para se dar conta de regras que não foram cumpridas nada como novas regras.
Mostra-se estrutural no Brasil o conflito distributivo não resolvido. Gastos sociais, infraestrutura do estado, subsídios, demandas político-eleitorais, todos lutam por espaço num orçamento que não as comporta. Devemos lembrar que o Brasil foi um clássico na criação e no desenvolvimento de um processo inflacionário crônico a partir de 1946, algo estancado apenas no governo FHC no final do século. As raízes de um país visceralmente necessitado de inflação estão voltando à tona, e ao contrário do século passado, não surgem trazendo estradas, indústrias e uma nova capital. Renovamos nosso flerte com a estagflação. E assim o Brasil segue caminhando para o futuro no pretérito.
TERMÔMETRO
CHAPA QUENTE | GELADEIRA |
A pesquisa do Instituto Ipec, divulgada esta semana, mostra a força no momento da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva. Nos cenários testados, Lula obtém uma intenção de votos que ultrapassa em mais de dez pontos percentuais a soma de todos os demais candidatos, indicando uma chance de vitória ainda no primeiro turno. O anúncio da desfiliação de Geraldo Alckmin do PSDB pode ser o início do processo de formação de uma aliança ao centro, conferindo a Lula o parceiro conservador que ele precisaria para dissipar receios à direita à sua candidatura. |
A pesquisa mostra também as dificuldades até agora de construção da chamada terceira via. Nos cenários pesquisados, a tentativa de terceira via da vez, Sergio Moro, do Podemos, aparece somente com 6% e 8%, respectivamente. O cada vez mais desidratado Ciro Gomes, do PDT, com 5% em ambos os cenários. E o governador de São Paulo, João Doria, mesmo depois de exposto pelas prévias do PSDB, pai da vacina Coronavac contra a covid-19, consegue a proeza de empatar em 2% com André Janones, do Avante. A terceira via segue até agora sendo tão somente uma ideia em busca de um nome que realmente a viabilize.
|