Paulo Novais *
Outro dia ouvi um especialista em Regimento Interno dizer que uma determinada interpretação do Regimento não poderia ser adotada porque afetaria o direito da Oposição de dificultar o processo, ao que me contrapus veementemente. Isso porque o Regimento Interno se presta a uma finalidade formal e institucional: fazer acontecer o processo legislativo dentro dos parâmetros e diretrizes elencados na norma em sentido amplo, incluindo o próprio Regimento Interno e a Constituição. Nesse aspecto, o Regimento não é instrumento nem da Maioria nem da Minoria, mas é uma ferramenta reguladora do processo legislativo, a que ambas devem reverência.
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Os interesses no uso do Regimento Interno podem ser os mais diversos possíveis, desde a obstrução de um partido até o ímpeto da maioria de passar por cima de tudo e de todos, ou até mesmo uma provocação pessoal. Mas nenhum desses interesses é legítimo para interferir na teleologia ou na hermenêutica do mandamento processual.
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É certo que tanto a Oposição quanto a Maioria farão o manuseio das regras regimentais, cada qual com fins subjetivamente definidos; a primeira procurará dificultar o processo legislativo no que não lhe interessa, a segunda, naturalmente, procurará facilitar, fazer avançar o processo legislativo para chegar ao resultado pretendido. Essa subjetividade, entretanto, não pode atrapalhar os objetivos da norma.
Temos, no entanto, uma questão a enfrentar: o uso das normas regimentais, de parte a parte, especialmente quando dependem de uma interpretação na sua aplicação, tem que se submeter à razoabilidade? Ou essas são absolutas no que literalmente expressam? Ora, é notório que nenhuma norma consegue exaurir as situações fáticas que podem ocorrer no processo legislativo. Daí a inexorável necessidade da interpretação.
PublicidadeNão é exagero dizer que o que não é razoável não é jurídico (no sentido de ser harmônico com o ordenamento), podendo até ser legal. É que o ordenamento não suporta desproporcionalidades (entendidas em contraposição ao princípio da proporcionalidade) ou irrazoabilidades. Ou então estaremos condenados a sofrer maluquices de toda sorte em nome da literalidade dos textos normativos.
A título de exemplo, o art. 178 do Regimento Interno permite o requerimento de adiamento da discussão por até 10 sessões. Por sua vez, o § 2º do mesmo artigo prevê que, se forem apresentados dois ou mais requerimentos de adiamento, será votado em primeiro lugar o de prazo mais longo. Na prática, irrazoavelmente isto significou por muito tempo que toda proposição, além dos requerimentos de praxe, tinha de enfrentar 10 – isto mesmo: DEZ – requerimentos de adiamento da discussão, cada um com os seus encaminhamentos, orientação de votação, etc., até poder chegar ao mérito da matéria. Foi aí que, perante o abuso – a irrazoabilidade – no uso da norma, mesmo amparado pela literalidade do texto que permitia uma procrastinação quase insuperável, a questão de ordem 162/2007 restringiu sua abrangência, estabelecendo que cada partido somente poderia apresentar um único requerimento de adiamento. Ufa! A questão voltou a ocupar os limites da sensatez.
É muito possível que o legislador, ao elaborar o dispositivo, jamais tenha vislumbrado seu uso abusivo por parte de quem pretendesse inviabilizar o processo. Ora, a norma regimental possui um fim determinado. A finalidade do requerimento de adiamento da discussão é permitir que, perante o poder do Presidente de pautar as matérias, o Plenário possa decidir se quer ou não discuti-las naquela oportunidade. É sobre esta base que o dispositivo precisa ser interpretado e aplicado. A subjetividade de quem usa o requerimento não pode ser o norte da interpretação, pois ao mesmo tempo em que alguém da Maioria, mesmo favorável no mérito, pode utilizar o requerimento para pressionar o governo a liberar emendas, o outro, da Oposição, contrário à matéria, pode utilizá-lo para procrastinar sem fim o processo. Observem que a norma em si não pretende atender nem a um nem a outro desses objetivos, mas a um propósito institucional, constitucional e legislativo, conforme mencionado.
Assim, não é possível desfocar do processo legislativo e deixar de aplicar uma interpretação da norma interna sob o argumento de que esta ou aquela interpretação prejudica a Maioria que deseja votar logo, e muito menos de que vai retirar a possibilidade de a Oposição usar o instrumento regimental para tentar vencer pelo cansaço. Dentre as interpretações possíveis, parece razoável que a melhor opção seja aquela que favoreça o processo legislativo no seu fim específico, independentemente das subjetividades de quem quer utilizar a regra para este ou aquele fim.
* Paulo Novais é autor do livro Regimento Interno Facilitado da Câmara dos Deputados, que está em sua 4ª edição. Advogado; graduado em Filosofia; pós-graduado em Direito Público; pós-graduado em Direito Constitucional; extensão em Direitos Humanos; Secretário de Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara dos Deputados.
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