José Sant’Anna e André Sathler Guimarães*
A chamada Dama de Ferro, Margaret Thatcher, primeira ministra do Reino Unido nos anos 1980, impôs sua agenda extremamente liberalizante sob o argumento TINA: there is no alternative (não há alternativa). O resultado veio na forma de desemprego massivo, aumento da desigualdade social e na triplicação da pobreza infantil, entre 1979 e 1995. É o modus operandi autoritário – a alcunha de Ferro deixa bem claro o perfil autoritário da ex-primeira-ministra –, de quem supõe a superioridade moral de suas convicções e, portanto, a possibilidade de não realizar o debate público, amplo e transparente sobre as opções existentes.
Em nosso País, em anos recentes, a Reforma da Previdência ganhou, por parte da elite do mercado financeiro e da grande imprensa, o manto do TINA: virou panaceia para todos os males cultivados em quinhentos e poucos anos de história nacional.
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Os defensores da reforma da previdência indispensável e do apocalipse como contrapartida inexorável à sua não aprovação o fazem sob o manto de um fundamentalismo quase religioso. Revestem-se, ainda, com a sobrecasaca da ortodoxia. Esquecem-se, todavia, dos gregos, com Platão afirmando que a ortodoxia era apenas uma opinião correta, porém desprovida de base científica. Ao governante, recomendava o filósofo, cabia a epistème, o conhecimento científico.
A análise dos dados consolidados do resultado da previdência demonstra uma dinâmica de estabilidade no período de 2004 a 2014, inclusive com momentos de queda da relação déficit/PIB em alguns anos. A partir de 2014, esse déficit aumentou, impactado fortemente pelo ciclo econômico de redução do PIB, em 2015 e 2016, e lenta recuperação subsequente, em 2017 e 2018. É evidente o caráter cíclico dessa expansão da relação déficit/PIB. Buscando dialogar com as referências próprias ao campo liberal da economia, encontramos Milton Friedman, tratando de sistemas de seguridade social, argumentando que esses programas “não devem ser mudados em resposta à flutuações cíclicas na atividade econômica”. Para Friedman, mudanças deveriam ser implementadas somente em resposta a alterações no tipo e nível de transferências intergeracionais que a comunidade sente que deve fazer e que é capaz de suportar. Ou seja, discussões mais amplas, relacionadas à própria concepção do que são os princípios e valores de uma sociedade.
Friedman parece ecoar ideias anteriormente demonstradas por Paul Samuelson, primeiro norte-americano a receber o Prêmio Nobel de Economia (suficiente para a ortodoxia?), no seu chamado modelo de gerações sobrepostas. Em um mundo em que “novas gerações estão sempre chegando” e em que “cada e todo hoje é seguido por um amanhã” e com o governo sendo uma entidade sem restrições temporais estabelecidas a priori (é permanente), pode-se discutir os arranjos intergeracionais subjacentes à gestão da renda nacional, inclusive buscando soluções temporariamente expansionistas (keynesianas) para corrigir momentos de retração, quando existe ociosidade nos fatores produtivos.
PublicidadeAndré Lara Rezende, economista ortodoxo e mainstream, corajosamente, ousou trazer um início dessa discussão para a esfera pública, por meio de textos acadêmicos e artigos de opinião no jornal Valor Econômico. Foi muito criticado, em bases pouco justas. Em sua defesa, lembramos Keynes: “nós, professores de Economia, nos tornamos culpados do presunçoso erro de considerar obsessão pueril o que durante séculos foi o objetivo principal da arte prática de governar”. Mostrou, com exemplos reais, como a prática do Quantitative Easing nos países desenvolvidos, que a ortodoxia precisa dialogar com as circunstâncias. Não se trata de nova matriz econômica, de gastança irresponsável ou de utopias de abundância. Trata-se, outrossim, do reconhecimento de que os instrumentais à disposição do médico economista devem todos ser analisados com responsabilidade e empregados conforme a situação. Panaceia não é solução. Panaceia pode significar a morte do paciente, pois, o que supostamente tem poder para curar tudo, na verdade não pode curar nada especificamente.
O Apocalipse cristão pode chegar a qualquer momento, como um raio, conforme Cristo anunciou. O apocalipse provocado pela falta da reforma da previdência não vai chegar agora. Pelo menos não tão cedo. Já outro apocalipse pode estar se anunciando: o da democracia. Giovanni Arrighi foi um dos economistas a demonstrar como, ao longo da década de 1920, os teimosos austericidas se uniram a políticos de perfil autoritário, ajudando-os a ganhar o poder e, posteriormente, provocarem a catástrofe do nazi-fascismo.
*Economistas
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