O acesso ao transporte público – fundamental para o deslocamento de parte da população que ficou ainda mais vulnerável nesse momento de profunda crise – está entre os vários problemas sociais escancarados pela pandemia.
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Os movimentos sociais por tarifa zero e pela mobilidade urbana sempre questionaram o modelo de oferta do serviço, que hoje acontece por meio da tarifa, calculada por passageiro e não pelo custo da operação, provocando superlotação e, em momentos de baixa circulação, falta de recursos para as empresas, que em tempos normais, lucram em cima da falta de qualidade.
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Apenas em Brasília e São Paulo há recursos extratarifários, por meio dos orçamentos públicos locais. No entanto, como os contratos e licitações são sempre mais ao gosto das empresas do que da população, além de não haver fiscalização por parte do governo junto aos empresários, o subsídio não garante passagens acessíveis, ao contrário, Brasília tem uma das tarifas mais altas do Brasil.
Queda na utilização do TPU
PublicidadeCom a pandemia, houve uma queda no número de usuários do sistema, fazendo com que, em vários lugares, as empresas recorressem aos governos para terem um aporte de recursos que as permita continuarem atuando. Como o Transporte Público Urbano (TPU) é fundamental, não se espera que no pós-pandemia se tenha de enfrentar, entre tantas mazelas, a ausência desse serviço. Então, o aporte governamental é necessário, mas critérios de oferta do serviço, com qualidade e segurança para usuárias (os), precisam ser assegurados.
Além disso, tem-se que pensar em longo prazo, pois a crise instalada reforça a necessidade de repensar o sistema, fazendo dele uma política de fato pública, tal qual estabelecido no artigo 6º da Constituição Federal, que diz ser o transporte um direito social, ao lado de políticas como saúde, educação, moradia etc. E se é direito, precisa ser regulamentado para que a população o acesse com todas as premissas necessárias, como qualidade, acessibilidade, segurança, modicidade de tarifas, ou tarifa zero, como já está previsto na Política Nacional de Mobilidade Urbana.
Relevante dizer que em meio à pandemia, as frotas em várias cidades brasileiras foram reduzidas sem que fosse feito estudo para saber onde há maior demanda, que, em geral, são nas periferias, cujos moradores continuaram trabalhando e superlotando o TPU, com todos os riscos de contaminação, tanto de passageiros, quanto de motoristas. Pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mostra que motoristas de ônibus têm 70% mais chances de se infectarem que outros trabalhadores, há registros de contágio, com alto índice de mortes, em todas as cidades brasileiras com sistema de transporte público. Entre os passageiros, a população periférica e negra é a mais afetada com a impossibilidade de cumprimento das regras impostas pela Organização Mundial de Saúde em transporte abarrotado de pessoas.
Várias pesquisas têm sido realizadas e há uma tendência da população a restringir o uso do transporte público por medo de contágio. Muitos dizem querer trocar por transporte individual motorizado. Caso a demanda por TPU reduza ainda mais, com o consequente aumento dos automóveis individuais motorizados nas vias públicas, as cidades, especialmente as maiores, ficarão inviáveis, pois muitas já estão com capacidade máxima de veículos em suas ruas. As externalidades provocadas por tal processo vão além de tempo perdido, são mais acidentes, maior demanda para o Sistema Único de Saúde, mais poluição, maior emissão de gases de efeito estufa, agravando ainda mais o aquecimento do planeta.
Levando em consideração que nos últimos anos o TPU já vinha perdendo passageiros por inúmeras razões, como tarifas muito altas, falta de infraestrutura dedicada, superlotação, congestionamentos causados, principalmente, pelos automóveis, não é ocioso repetir que o modelo de lucro por passageiro exige, segundo a Associação Nacional de Empresa de Transportes (NTU), seis passageiros por metro quadrado. O que já era inviável em tempos normais, imagine em tempos de pandemia. Falta transparência sobre as operações, quem comanda todo o processo são os empresários, que certamente almejam as maiores taxas de lucro, a despeito do que é oferecido à população.
Fundo de financiamento do TPU
O que se propõe, então, é que o sistema seja repensado integralmente e não mais remunerado por tarifa, mas sim por fretamento de empresas, ou por empresas públicas, remunerando pelo custo da operação, com veículos suficientes para usuárias (os) trafegarem sentadas (os). Com segurança, tanto para trabalhadores, quanto para os passageiros, especialmente mulheres, que além de utilizarem transporte sem qualidade, ainda são alvo de assédios.
Para tanto, a criação de um fundo de financiamento do TPU é emergencial, a pandemia acelerou a necessidade de repensar a política e atender ao direito social por mobilidade com conforto e segurança, especialmente para a população periférica, que mais utiliza os modais públicos. E os usuários do transporte individual motorizado precisam contribuir para esse fundo, afinal, a maior parte da infraestrutura urbana, construída com recursos dos impostos de todas as pessoas, proprietárias de automóveis, ou não, é utilizada por veículos individuais. O TPU precisa disputar as vias com inúmeros carros particulares, sem que tenha infraestrutura própria, pois os corredores individuais não são regra, mas sim exceção.
O TPU é instrumento que contribui para a efetivação do direito à cidade para todas as pessoas. Sem mobilidade, esse direito não se realiza. E quando se pensa em transporte de qualidade, pensa-se em linhas para todas as localidades, com veículos suficientes, limpos e confortáveis, em todos os dias da semana e em diversos horários – não apenas para que se possa ir ao trabalho, como ocorre em vários lugares do país, em que o racismo institucional opera em todos os níveis, transformando o TPU em verdadeiros navios negreiros, citando um membro do Movimento Passe Livre- DF.
*Cleo Manhas é assessora política do Inesc.