*Daniel Giotti de Paula
A indicação de Kassio Nunes, desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, para ministro do Supremo Tribunal Federal na vaga do decano Celso de Mello, contrariou todas as apostas non sense, apocalípticas e fantasiosas, que rondavam as mentes e os corações de todos os brasileiros.
Na imensa lista de apostas para a vaga, havia algumas beirando ao folclore, como a da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, cuja trajetória jurídica, com todo respeito a ela, não está à altura do cargo, um ato digno de caricatura que poderia equiparar o presidente a Floriano Peixoto, que em 1892 tentou fazer do médico Barata Ribeiro um membro da corte constitucional.
Causou temor entre aqueles que valorizam o caráter laico um medo quase apocalíptico em Bolsonaro escolher “uma pessoa terrivelmente evangélica”, pois isso seria um indicativo de que para interpretações constitucionais o governo quisesse bases religiosas, e não as tradicionais “fontes sociais do Direito”, o “Direito Constitucional posto”, para usar dois termos técnicos.
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Houve ainda aqueles que apostavam no juiz Marcelo Bretas, que a julgar por como se expôs em suas redes sociais, poderia trazer para o STF alguém sem papas na língua e com uma exposição fora do figurino padrão da corte.
Mas a escolha foi por um magistrado de “carreira”, porque o presidente foi more presidential, seguindo os requisitos constitucionais para sua indicação. Além da idade mínima de 35 anos, Kassio possuiria notável saber jurídico e caráter ilibado pelo próprio cargo que já ostenta. As aspas calham, porque, em verdade, é desembargador escolhido pelo chamado “quinto constitucional”, não tendo prestado concurso para juiz federal.
As escolhas para ministros do STF desafiam o senso comum, que crê tudo poder o presidente da República.
O presidente no Brasil não tem os poderes imperiais e magistrais atribuídos ao presidente dos Estados Unidos da América, comparação aliás que sequer se prestaria neste caso, porque uma das coisas que um presidente não pode nos States é ser inconsequente nas indicações para os justices, os ministros da Suprema Corte.
A sabatina do Senado é levada tão a sério lá, que ainda que o presidente tenha maioria parlamentar, se o candidato tiver deslizes morais em sua vida pregressa, tiver feito um lobby intolerável, queimado um bandeira do país, sucumbe e, quando sucumbe, parte do poder magistral do presidente dos EUA se vai.
Os freios e contrapesos nos Estados Unidos da América possuem uma dimensão institucional invisível para a estrutura jurídica, que é curiosamente o combustível para a força normativa da Constituição e da democracia norte-americanas.
Voltando ao Brasil, como o presidente Bolsonaro é cada vez mais um insider na política, deixando as bravatas para alimentar uma parcela do eleitorado que lhe dá câmaras de eco, mas não base política real, fez a opção tradicional por alguém que, sob o crivo do Senado, não será visto como sem os predicados constitucionais.
Claro que a vida pessoal e jurisdicional do desembargador será agora pesquisada, como já o foi internamente pelo Palácio do Planalto, mas dificilmente se poderá acusar Bolsonaro de uma escolha infeliz e não republicana. Decisões que deu a favor ou contra a liberdade de expressão, que tocam direitos fundamentais em geral serão postas à prova, e é bom para a democracia que assim ocorra.
Como disse recentemente o presidente Fernando Henrique Cardoso, em entrevista no Roda Viva, em um órgão colegiado com 11 pessoas, o natural é que os magistrados se acomodem à tradição jurisdicional e julguem com base na Constituição, e não imponham sua vontade. Escutam a sociedade, é claro, mas possuem convicções jurídicas.
A indicação do presidente sinaliza para essa continuidade institucional e mostra que a escolha “menos óbvia”, de fato, pode ser a mais racional.
*Daniel Giotti de Paula é procurador da Fazenda Nacional e professor, é doutor em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
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