Armando Medeiros* e João José Forni**
A Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia avança e já desvenda a inércia e a negligência oficiais no sentido de garantir sólidos suprimentos de vacina para o país. O relatório final já antecipa um nó de corrupção nas negociações e o fato de autoridades terem desperdiçado oportunidades de aquisição de doses que poderiam salvar vidas.
É uma CPI que ocorre no ambiente midiático diferente das investigações no Congresso Social que marcaram a história brasileira, como a CPI sobre as atividades de PC Farias, durante o governo Collor, a dos anões do orçamento e, mais recente, no início dos anos 2000, a CPI dos Correios.
Os mecanismos de investigação da CPI para investigar como o governo conduziu o combate à pandemia se movem dentro de um complexo circuito de mídias e canais – um ecossistema informativo diversificado e com forte influência das redes sociais. A mídia tradicional já não consegue ser mais o primeiro rascunho da história e nem ser a principal referência nas discussões da agenda pública. O aparato das redes sociais, controladas por megacorporações, favorece o ativismo, seja pelo engajamento de indivíduos ou técnicas de manipulação com robôs, sob o impulso das dezenas de critérios das plataformas de distribuição e valorização de um determinado conteúdo. Seja por grupos de influencers, que aderem a determinadas causas, sem compromisso com a sociedade e muito menos com a verdade. É conhecido, hoje, que os algoritmos criam bolhas que não dialogam entre si e valorizam conteúdos que despertam fortes reações.
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O efeito mais visível é potencializar a multiplicação da mentira como ação política e lucrativa. Como revelou um autor de postagens com informações falsas, violentas, preconceituosas e inverossímeis: “Quanto mais extremistas nos tornamos, mais as pessoas acreditam”.
Foi o que disse o blogueiro Christopher Blair, citado em denso artigo do jornal Washington Post (17/11/2018), com um título que pode ser traduzido para “Nada nesta página é real: como as mentiras se tornam verdade na América online”, de autoria do repórter do jornal, Eli Saslow, vencedor do Prêmio Pulitzer. Ao acordar, para mais um dia de trabalho, travou o seguinte diálogo com um amigo: “Que loucura viral devemos espalhar esta manhã?” perguntou o amigo. “Quanto mais extremistas nos tornamos, mais as pessoas acreditam”, respondeu Blair. Detalhe: em um bom mês, a receita de publicidade de seu site pode render até US$ 15 mil. Alguma semelhança com certas redes brasileiras?
PublicidadeA indispensável exatidão e apuração cuidadosa das informações
Ao prestar um depoimento cuidadoso, na linha tênue de que seu partido é a ciência, inspirada numa neutralidade e racionalidade bem-vindas, mas nem sempre possível, a infectologista Luana Araújo – contratada para a Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19, do Ministério da Saúde, mas impedida de tomar posse, certamente porque não atendia aos requisitos do negacionismo crônico do governo – repetiu a tese de que informação de qualidade é também um remédio. Afinal, a covid-19 é mais um dos temas polêmicos e polarizadores que infestam a internet – e, infelizmente, apesar de quase 4,2 milhões de mortes em todo o mundo, sendo mais de 550 mil no Brasil, apresenta áreas nubladas, incógnitas e não escapa da desinformação. De onde surgiu o vírus, o tratamento precoce, a ineficiência das vacinas, os questionamentos sobre a lotação dos hospitais (há reportagens mostrando as maiores mentiras), as ações dos governos estaduais frente o governo central, são tópicos de intensa propagação. Em que e em quem acreditar?
Nem mesmo parlamentares, membros da comissão, ou depoentes, ficam incólumes da manipulação de edições de vídeos que buscam mostrar incoerências e contradições nos posicionamentos. A CPI, embora tenha nascido sob desconfiança de que seria um instrumento meramente político, acabou cumprindo um papel importante de descobrir como o negacionismo fazia parte de uma política de governo, instrumentalizada por profissionais (políticos, médicos, professores, curiosos) da intimidade do presidente e de ministros da casa. Isso explica por que dois médicos não ficaram muito tempo no Ministério da Saúde, que acabou nas mãos de um militar, sem experiência em saúde e que certamente estava lá mais para cumprir ordens do presidente do que para resolver os problemas da pandemia.
A novidade na CPI: agências de checagem
As sessões da CPI acabaram se tornando cada vez mais aprimoradas com os serviços de verificação das informações e a convocação de especialistas em auditoria e controle, dada a quantidade de material que acabou caindo no colo do presidente e do relator da CPI. Quanto mais em cima da hora, quanto mais veloz for a checagem – durante o próprio depoimento – a dinâmica dos trabalhos ganha novo ritmo. Ou seja, quanto menos a posteriori, mais força terá a checagem da veracidade, desmontando os álibis das autoridades e especialistas. Não é tarefa fácil, mas desafiadora. Em alguns casos, os depoentes foram constrangidos a ponto de um deles, funcionário do Ministério da Saúde, demitido dias antes, ter sido preso em flagrante, por ordem do presidente da CPI, por faltar com a verdade. O episódio pode ter sido interpretado como mais um factoide, para a mídia, sem efeito prático, mas serviu como um alerta de que qualquer outra fonte convocada a depor, a partir de então, não importa quem fosse, deveria se comprometer com a verdade ou, deveria vir garantido por habeas corpus, para ficar calado.
O professor Marcos Palácios (UFBA), no artigo “Fake news e a emergência das agências de checagem”, registra pesquisa do Ipsos Institute na qual os brasileiros aparecem como o povo que mais acredita em fake news no mundo. São 62%, seguidos de Arábia Saudita e Coreia do Sul (58%) e Peruanos e espanhóis (57%). A checagem dos fatos (fact checking) constituintes de uma notícia é uma das características definidoras do chamado jornalismo moderno. A pandemia exacerbou os abusos, favorecendo a proliferação de notícias falsas, boatos e informações erradas sobre saúde. Pior é que até médicos e eventuais profissionais de saúde, inescrupulosos e aparelhados, usaram as redes sociais para dar vazão a informações contraditórias, não comprovadas cientificamente e, pior, politicamente suspeitas.
Importa por isso tentar compreender o que mudou e porquê, bem como que efeitos tais mudanças podem acarretar para a credibilidade jornalística.
Cristina Tardáguila, em artigo no portal Uol (27/05/2021), avalia que “a CPI da Covid tem sido uma caixa de ressonância para conteúdos enganosos”, razão pela qual o fact-checking é bem-vindo e necessário. Sim, as sessões editadas, vídeos curtos, sem contextualização, misturam casos de aborto, vacina e questionamentos sobre as políticas de distanciamento. Algumas dessas fake news acabam aproveitando notícias de saúde vindas do exterior para fazer confusão e disseminar teses fajutas, respaldadas pelo negacionismo patrocinado pelo governo.
“Se no Senado se sentem no direito de mentir, de reproduzir falas que não condizem com a verdade, o que vai acontecer no bar ou no WhatsApp da família?” indaga Tardáguila.
Na mesma linha, em um evento recente, realizado pela Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública), a pesquisadora da Universidade de Liverpool Patrícia Rossini palestrou, como convidada, sobre um estudo, elaborado por ela em parceria com Antonis Kalogeropoulos, chamado “Informação e desinformação sobre a covid-19 no Brasil”.
A pesquisa trata o consumo de informação por WhatsApp no Brasil como um fenômeno: 81% dos participantes consideram o aplicativo a principal fonte de informação. “O uso do WhatsApp para consumo de informações no Brasil tem crescido bastante. Segundo relatórios do Instituto de Jornalismo da Reuters, em Oxford, o WhatsApp é utilizado para notícias quase tanto quanto o Facebook. O mais comum são conversas em grupos, onde, na maioria das vezes, são enviadas notícias sem links e fontes”, explica a pesquisadora.
O estudo foi realizado durante a primeira onda da pandemia no Brasil, em julho e agosto de 2020, em duas etapas (2.010 pessoas na primeira fase e 1.378 na segunda), utilizando painéis on-line do Ibope Inteligência. A pesquisa faz parte do projeto “Está no WhatsApp, então deve ser verdade: mídias sociais e acesso a notícias como caminhos para explicar desinformação e comportamentos sobre covid-19”, que é financiado pela Universidade de Liverpool.
Os autores dizem que a polarização da resposta institucional de diferentes atores políticos pode ter influenciado a confiança dos brasileiros nas informações, mas também “criaram mais desafios para os cidadãos navegarem por informações verdadeiras e falsas sobre a pandemia”. Similar ao que ocorreu no Reino Unido, eles dizem que informações confusas vindas de autoridades e da mídia, tornam mais difícil “distinguir em quê e em quem confiar”. Para eles, “uma resposta eficaz depende principalmente da capacidade da fonte e do meio para divulgar informações precisas e confiáveis sobre medidas preventivas e restrições ao público”.
Chama atenção como as pessoas questionam a autoridade dos especialistas, sem nenhum cuidado ou aviso (“olha, não conheço bem o tema” ou “minha opinião é de um leigo”) mas, ao contrário de propor caminhos e soluções seguras, os comentários são feitos para dominar o debate, impor achismo como se fosse verdade absoluta. Um comportamento sem a humildade dos filósofos gregos (“só sei que nada sei”) indicando que é sinal de sabedoria reconhecer a dimensão da ignorância própria. Quanto mais aprendemos, mais percebemos o quanto nos falta conhecimento. Por outro lado, rasga-se a concepção do ato de comunicar como um ato de diálogo. Sem abertura para ouvir os diversos lados, ou os especialistas, apenas disposto a aceitar a sua própria opinião, não há comunicação efetiva.
Fecho: crises lidam com fábricas de mentiras
Os episódios que envolvem a CPI da Pandemia trazem à tona políticas deliberadas de desinformação, alimentadas por teorias conspiratórias de todos os matizes, e as reações daqueles empenhados em aceitar apenas a informação bem apurada, exata e checada.
Os indivíduos podem desprezar determinados fatos e informações para se apegarem aos conteúdos que estão de acordo com seu estoque de argumentos, suas próprias crenças. E podem dar credibilidade e seguir informações nas quais realizam suas fantasias ou fazem catarse, como explica a psicologia.
No caso da covid, o Brasil foi vítima de duas crises: a pandêmica e a política. Quis o destino que o país tivesse na presidência um governante que desde o princípio foi de encontro ao que a ciência recomendava. Com isso, ele e seguidores fanáticos começaram a criar uma milícia de divulgação de fake news, altamente perniciosa para o combate à pandemia e a obediência às regras sanitárias. Basta dizer que até hoje, um ano e meio depois do início da pandemia e após o país amargar mais de 550 mil mortos e cerca de 20 milhões de infectados, o presidente e muitos ministros e seguidores se negam a usar máscaras em público. Como se o gesto fosse uma provocação aos “babacas” que teimam em fazer o que a ciência no mundo todo recomenda. Certamente, esse desdém custou muitas vidas de pessoas que, por ignorância ou militância, devem ter achado bonito um presidente peitar a ciência.
Em 11 de maio de 1975, o jornal Notícias Populares, de cunho sensacionalista, circulou com a seguinte manchete: “Nasceu o diabo em São Paulo”. A notícia dizia que, em um hospital de São Bernardo do Campo (SP) ocorrera um “parto incrivelmente fantástico e cheio de mistérios”, marcado por “correria e pânico por parte de enfermeiras e médicos”. A notícia do nascimento do “bebê-diabo” aumentou a circulação do jornal Notícias Populares que saiu de 70 mil para 150 mil exemplares. Nas bancas da cidade, o jornal praticamente esgotou. Durante meses a fantasia foi noticiada pelo jornal até que a audiência foi gradativamente esfriando e o “bebê-diabo” acabou, segundo o jornal, fugindo e desaparecendo no interior do país.
Eram outros tempos, mas ficou a angustiante indagação: quando haverá trégua para o triunfo da informação correta? Em que momento aqueles que estão sendo alimentados de conteúdos tóxicos voltarão a respirar “realidade”? O grande dilema é que o “bebê-diabo” sumia e não matava ninguém; hoje, o negacionismo mata. Não apenas no Brasil, mas em outros países também, como aconteceu nos Estados Unidos, principalmente.
Conclusão
O pior dessa verdadeira epidemia de desinformação, dentro da pandemia, é que pegou as pessoas em momentos extremamente vulneráveis. Desde o início da crise da covid-19, os especialistas alertavam que a comunicação se tornaria o insumo mais importante para ajudar as pessoas a agir e tomar as decisões corretas: usar máscaras, se proteger, evitar aglomeração, remédios recomendados, tratamento precoce ou não, quando ir ao hospital, risco da doença. No meio de três crises que se imbricaram: sanitária, econômica e política, somente a comunicação tinha o poder de esclarecer as pessoas.
E aqui é relevante ressaltar o papel da mídia tradicional que, apesar da quantidade de desinformação, tenta no meio do caos dar uma pouco de ordem a essa onda de notícias falsas, propositadamente plantadas para esconder, muitas vezes, as intenções econômicas, políticas e até a incompetência dos governos. Isso ocorreu durante longo período, nos Estados Unidos, em 2020, tendo o próprio presidente Trump como um dos principais paladinos, a ponto de (acredite, se quiser) recomendar o uso (ingestão) de desinfetante doméstico para matar o coronavírus. Não por coincidência, países onde a pandemia foi mais agressiva e mortal, como EUA, Brasil, México, Reino Unido, Itália, Índia foram exatamente os lugares onde os governos não fizeram ou demoraram a tomar atitudes que tivessem coerência e assertividade para reduzir o risco de contágio e as mortes. Isso teve um custo humano, tanto física quanto psicologicamente, extremamente deletério. Para muitos, infelizmente, a verdade poderia ter chegado bem cedo. Mas foi tarde demais.
* Armando Medeiros de Farias é jornalista, especialista em Ciência Política (UFMG) e mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).
** João José Forni, jornalista e mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília e consultor de comunicação, é autor de Gestão de crises e comunicação – o que gestores e profissionais de comunicação precisam saber para enfrentar crises corporativas (Atlas, 3ª edição).
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