André Rehbein-Sathler e Renato Ferreira*
Um famoso teste de psicologia cognitiva, realizado para mostrar equívocos de percepção, envolve a observação de dois trios de pessoas trocando passes com uma bola de basquete, um vestido de branco e outro de preto. Os observadores são orientados a contar quantos passes são trocados apenas pelos jogadores de branco, o que exige foco nesse trio e em seus muitos movimentos, já que os de preto também se movimentam e trocam muitos passes. Durante o teste, uma pessoa vestida de gorila atravessa a quadra. Ao final, as pessoas são perguntadas se viram ou não o gorila e a maioria responde que não. A grande atenção exigida para contar os passes bloqueia a percepção de qualquer outra coisa (caso tenha interesse, veja o teste na Web), uma ilusão cognitiva impressionante, motivada pelo foco direcionado a outro objeto.
No jogo político-partidário, as ilusões cognitivas não deixam de marcar presença. O mais recente exemplo se deu na apreciação da Medida Provisória nº 870, que trata da reforma administrativa, na Câmara dos Deputados. Enquanto o relator da medida provisória e a própria mídia mantiveram, o tempo todo, o foco na questão do locus administrativo do Coaf – Conselho de Controle de Atividades Financeiras – (deixando todo mundo de olho na troca de passes), havia embutida na MP nº 870 um dispositivo muito mais grave, que poderia provocar a nulidade de toda a operação Lava Jato. Felizmente, nesse primeiro round, o dispositivo gorila foi derrotado, graças aos esforços do Partido Socialista Brasileiro (PSB), o único a alertar sobre o ponto em plenário.
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Tomando por base um funcionamento normal das instituições, importa lembrar em primeiro lugar que em uma república nenhuma instituição ou órgão está nas mãos de quem quer que seja. Cabe lembrar também que o Coaf funciona bem na estrutura do Ministério da Economia e tudo indica que poderia também funcionar bem na estrutura do Ministério da Justiça. Ou seja, a questão do Coaf – que equivale à troca dos passes entre os jogadores de branco – talvez não fosse tão relevante assim, embora tenha sido tratada como a grande questão da medida provisória.
A medida provisória continha também a exigência de que os auditores-fiscais da Receita Federal passassem a solicitar autorizações judiciais para compartilhar com o Ministério Público dados fiscais que mostravam indícios de crimes não-tributários, como os de lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, corrupção, etc. Até hoje, vale lembrar, essa exigência nunca existiu e os fiscais tributários são orientados pela própria Receita Federal a repassar os dados que contenham indícios de crimes ao Ministério Público. Esse dispositivo tinha o papel dos jogadores vestidos de preto, as pessoas que passam pelo teste não prestam muita atenção neles, embora saibam que estão lá.
Mas havia também, na medida provisória, um gorila, o elemento que em tese deveria chamar mais a atenção, por ser o mais esdrúxulo e perigoso, mas que, pelo foco excessivo em questões menos relevantes, (quase) não foi notado na apreciação do texto. O gorila da reforma administrativa era a determinação de que a exigência de autorização judicial para o encaminhamento de dados fiscais pelos auditores-fiscais fosse aplicada a fatos pretéritos, sorrateiramente inserida no texto por meio de uma cifrada menção a um dispositivo do Código Tributário Nacional.
O perigo do gorila nesse caso é certamente equivalente, para a sociedade, ao encontro com um verdadeiro exemplar do gênero Gorilla, numa selva africana. Se a exigência de autorização judicial para o compartilhamento de informações fiscais se aplicasse a compartilhamentos realizados no passado, ela abriria a possibilidade de réus ou até mesmo pessoas já condenadas por crimes como lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e corrupção alegarem nulidades em seus processos e, com isso, se livrarem de suas condenações, inclusive aquelas que foram alvo da operação Lava-Jato. Afinal, a Receita Federal encaminha por ano mais de 2.500 representações fiscais para fins penais e grandes operações como a Lava-Jato tiveram várias de suas ações penais iniciadas com o encaminhamento de dados fiscais por parte de auditores-fiscais ao Ministério Público. Em nenhum desses casos houve determinação judicial, já que essa obrigação nunca existiu e os próprios normativos internos do Fisco preveem esse encaminhamento direto.
O mais impressionante a respeito da invisibilidade desse grande e perigoso gorila é que ele foi inserido, no projeto de lei de conversão, pelo líder do governo no Senado. Curioso de entender esse passo pois, salvo alguma surpresa, o governo de Jair Bolsonaro e seu Ministro da Justiça, Sérgio Moro, não devem estar interessados em criar nulidades em milhares de ações penais, inclusive da operação Lava-Jato. No entanto, o gorila entrou no meio do jogo e, também durante a apreciação na Câmara dos Deputados, demorou para ser notado.
De fato, foi apenas pela ação da bancada do Partido Socialista Brasileiro (PSB) que o gorila da retroatividade da exigência de autorização judicial para compartilhamento de dados fiscais foi retirado do texto que veio a suceder a Medida Provisória nº 870. Ao longo de boa parte da discussão, ninguém parecia nem mesmo notar que o gorila estava lá, tal qual as pessoas que se submetem ao teste que referimos. Partidos nas duas extremidades do espectro político pareciam não se importar com o fato, mesmo após ele começar a ser apontado. Ficou, ao final, a sensação de que a suposta briga pelo Coaf, na verdade, era apenas o pano citado por uma bem conhecida música brasileira: “O que a gente faz / É por debaixo dos pano / Prá ninguém saber / É por debaixo dos pano / Se eu ganho mais / É por debaixo dos pano / Ou se vou perder / É por debaixo dos pano. / É debaixo dos pano / Que a gente não tem medo /Pode guardar segredo / De tudo que se vê”.
*André é doutor em Filosofia e Renato é doutor em Ciência Política.
>>Quid valorem? (a Vale e seu “faça o que digo, não faça o que faço”)
>>A lei da mordaça na Receita Federal do Brasil