Marcelo Aith*
Nos últimos meses a imprensa noticia, quase diariamente que determinada associação, partido político e até grupos religiosos protocolaram representação na Câmara dos Deputados imputando crime de responsabilidade praticado pelo Presidente da República e pedindo a instauração de processo de impeachment. Afinal, o que é o crime de responsabilidade? E como é o procedimento?
Segundo dispõe o artigo 4º da Lei 1079, de 10 de abril de 1950, são crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra: a) a existência da União; b) o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados; c) o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; d) a segurança interna do país; e) a probidade na administração; f) a lei orçamentária; g) a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos; e h) o cumprimento das decisões judiciárias (Constituição, artigo 89).
Um exemplo das hipóteses de crimes contra a “existência da União” é “cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a neutralidade”. Os assaques praticados por Bolsonaro contra a República da China relativamente ao Sars-Cov, imputando-lhes a responsabilidade de espalhar o coronavírus com escopo de gerar o caos mundial, isso configura crime de responsabilidade? Poderia colocar o Brasil em risco de implicações econômicas, uma vez que a China é o nosso principal parceiro econômico? Esses insultos foram responsáveis pela demora na liberação de insumos da vacina CoronaVac?
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Exemplo de crime contra “o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados” poderíamos citar a seguinte conduta: opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos seus atos, mandados ou sentenças.
Quando o presidente Bolsonaro vai a sua rede social (Twitter) contra a instauração de inquérito contra as “fake news pelo Supremo Tribunal Federal e diz: “Ontem foi o último dia. Eu peço a Deus que ilumine as poucas pessoas que ousam se julgar melhor e mais poderosos que os outros que se coloquem no seu devido lugar, que nós respeitamos” e “não podemos falar em democracia sem um Judiciário independente, sem um Legislativo independente, para que possam tomar decisões não monocraticamente, por vezes, mas as questões que interessam ao povo que tomem, de modo que seja ouvido o colegiado. Acabou, porra”.
Estaria o presidente sugerindo intervenção militar” contra o STF? Essa conduta do presidente configura o crime contra o livre exercício do Poder Judiciário? Há ofensa ao Estado Democrático de Direito?
Já no que pertine ao crime contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, um exemplo elucidativo seria a conduta de violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 5º da Constituição da República. O presidente da República quando desestimula, durante a mais grave crise sanitária de todos os tempos, o uso de máscaras, provoca aglomerações, posiciona-se contra a vacina e a vacinação, estaria atentando contra o direito a vida e a saúde preconizados como direitos fundamentais no artigo 5º da Constituição? Não atender a tempo e modo as necessidades humanitárias do estado do Amazonas, estaria negligenciando com a saúde e a vida dos brasileiros e estrangeiros que vivem naquela unidade da Federação?
Por outro lado, exemplo de crimes contra a segurança interna do país seria “tentar mudar por violência a forma de governo da República”. Quando o presidente da República apoio manifestações em prol do regime militar (ou ditadura militar) estaria flertando com o crime descrito no artigo 8º, 1, da Lei 1079/50 acima transcrito? Quando o presidente diz que as Forças Armadas é quem decide se teremos uma democracia ou uma ditadura, está sugerindo que pode, na condição de Chefe Maior das Forças Armadas, dissolver os demais poderes e transformar o país em uma Ditadura Militar?
Com relação aos “crimes de responsabilidade contra a probidade na administração” há inúmeros exemplos que podemos destacar, mas restringirei ao “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. Quando Bolsonaro, em um evento público com dezenas de “desmascarados” em pleno auge na segunda onda da pandemia no Brasil, vira para seus apoiadores e diz a seguinte pérola: “Quando eu vejo a imprensa me atacar, dizendo que eu comprei 2,5 milhões de latas de leite condensado”; “Vai pra puta que o pariu!”; “É pra enfiar no rabo de vocês aí da imprensa”. São condutas compatíveis com a dignidade do cargo sair xingando aqueles que se opõe ao seu governo? O representante do País perante as demais nações mundiais ofende ao decoro do cargo ao sair falando impropérios para agradar sua claque?
Ainda em relação ao crime de responsabilidade contra a probidade em decorrência de “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. Em 20 de abril, quando o país registrava mais de 2,5 mil mortes, Bolsonaro foi questionado a respeito e respondeu: “Ô, cara, quem fala de… Eu não sou coveiro, tá certo?”. Em 28 de abril, o Brasil superou a China ao ultrapassar a marca de 5 mil mortos. Confrontado com a informação, Bolsonaro indagou: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”. Quando o Brasil atingiu 10 mil mortos, em 11 de maio, o presidente foi instado, também na portaria do Alvorada, a se pronunciar a respeito. “Olha, eu lamento cada morte que ocorre a cada hora. Lamento. Agora, o que nós podemos fazer, o que nós todos podemos fazer, é tratar com o devido zelo o recurso público”, respondeu. E quando ele disse que: “Não sou coveiro, tá?” Todas essas falas são compatíveis com a dignidade do cargo de presidente?
Aparentemente são fartos os motivos ensejadores da abertura de um processo de impeachment contra o Presidente da República. Há dezenas de pedidos de impeachment formulados contra Jair Messias Bolsonaro, mas o que impede o processamento desses requerimentos? Como funciona o procedimento?
O procedimento do processo de impeachment é complexo, contando com juízo de admissibilidade, instrução e julgamento perante o Congresso Nacional. Recebido o pedido o presidente da Câmara pode arquivá-lo ou procede a solicitação de formação de uma comissão especial para analisar a denúncia.
Essa comissão especial formada por 65 deputados, com representação de todos os partidos, notifica o presidente para exercer seu direito de defesa em dez sessões plenárias. Com a defesa e o pedido de impeachment em mãos, a Comissão Especial tem um prazo de cinco sessões para emitir um parecer e dizer se recomenda, ou não, que o processo continue.
O parecer será votado pela Câmara dos Deputados nas 48 horas seguintes ao ser recebido pela mesa diretora da Casa. Para levar o processo adiante são necessários dois terços dos deputados, ou seja, 342 votos. Na hipótese desse número não ser atingido, o processo é arquivado. Por outro lado, aprovado por dois terços da Câmara, o processo de impeachment segue para o Senado Federal, que tem competência constitucional para julgar o presidente por crime de responsabilidade.
A tramitação no Senado Federal é semelhante ao da Câmara dos Deputados: é formada uma comissão, que tem dez dias para emitir um parecer. O parecer também precisa ser votado. Para aprovação ou rejeição basta a maioria simples do Senado, ou seja, 41 dos 81 senadores. Se a maioria votar contra o processo é arquivado. Se a maioria for a favor, o processo vai a julgamento. Prosseguindo o presidente é afastado do cargo por 180 dias e o vice assume o posto interinamente.
O presidente do Supremo Tribunal Federal conduzirá a instrução e o julgamento e elaborará um relatório da denúncia. Por fim o plenário do Senado Federal realiza nova votação. Para que o impeachment seja aprovado, são necessários o apoio de dois terços dos senadores (54 senadores). Não havendo essa maioria qualificada, o presidente é absolvido e retoma o cargo. Alcançado os 54 votos a favor do impeachment, o Chefe do Poder Executivo é definitivamente destituído e fica oito anos impedido poder exercer um cargo público. O vice, então, assume o cargo em caráter definitivo.
Analisando o cenário político de hoje não vislumbro qualquer possibilidade de os pedidos de impeachments contra o presidente da República prosperarem. Se diante da disputa pelos comandos da Câmara e do Senado, o governo abriu o cofre e destinou R$ 3 bilhões para 250 deputados e 35 senadores aplicarem em obras em seus redutos eleitorais, imagina o “derrame” de dinheiro se o processo de impeachment tivesse seguimento?
Ah! Esse dinheiro todo destinados aos congressistas apaniguados poderiam ser destinado ao Estado do Amazonas para minimizar as nefastas consequências da ausência de oxigênio hospitalar? Ou poderia ser utilizado na compra de insumos para vacina? Ou melhor, poderiam ser usados para salvar vidas? Até quando vamos assistir calados aos assombros cometidos por esse desgoverno? Acorda brasileiros de bem!
*Marcelo Aith é advogado especialista em Direito Público e professor convidado da Escola Paulista de Direito (EPD)
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