Nos últimos meses ganhou visibilidade crescente a ideia esdrúxula, antidemocrática e inconsequente de intervenção militar contra os Poderes da República. As manifestações públicas dos grupos bolsonaristas, com explícito apoio do “mito”, propõem, sem nenhum pudor, o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional pela via da atuação dos militares brasileiros (aparentemente, ninguém convocou ainda os militares israelenses ou norte-americanos para a empreitada).
Na noite do último dia 13 de junho, um grupo de bolsonaristas promoveu, com fogos de artifício, um inacreditável espetáculo de “bombardeio” ao prédio do STF. Vídeos circularam na internet com narração, em tempo real, do episódio. Num deles, o narrador pergunta aos ministros do STF se o “recado” foi adequadamente entendido. A fortíssima carga simbólica do ocorrido, aparentemente inédita, mostra como um grupelho social, com apoio velado dos governantes de plantão no plano federal, trilha os caminhos das trevas.
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No dia 10 de junho, imediatamente anterior, em matéria de capa, o jornal “The New York Times” registrou que existe a possibilidade de um golpe militar no Brasil para garantir a manutenção de Jair Bolsonaro no poder. Subscrito pelos jornalistas Simon Romero, Letícia Casado e Manuela Andreoni, o texto destaca que Bolsonaro sofre pressões de todos os lados, notadamente em função do aumento nas mortes diárias provocadas pelo novo coronavírus e das investigações contra seus filhos e aliados.
Aparentemente, são dois os debates mais recorrentes em torno do assunto. Primeiro, as Forças Armadas, ou a maioria de seus comandantes, estão dispostos a capitanear uma aventura golpista? Segundo, esse eventual movimento de tropas, aspecto imediatamente visível das quarteladas tradicionais tem base jurídico-constitucional e lastro consistente na ordem jurídica brasileira?
Parece, ao menos a partir do noticiário da grande imprensa, que não existe uma dominante ou predominante disposição golpista ou intervencionista entre as Forças Armadas. Entretanto, algumas declarações públicas de certos generais deixam no ar algo que pode ser claramente entendido como ameaça. O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, ao atacar o pedido de apreensão dos celulares do presidente Jair Bolsonaro e de seu filho, Carlos Bolsonaro, “alertou” que a concretização dos atos “poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.
PublicidadeNa mesma linha, o ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, afirmou que o presidente Bolsonaro nunca defendeu um golpe militar no país, mas alertou a oposição para “não esticar a corda”. O próprio “mito”, entre várias declarações de intimidação ao Legislativo e ao Judiciário, cunhou esta pérola: “eles estão abusando, isso está a olhos vistos. O ocorrido no dia de ontem, quebrar sigilo de parlamentar não tem história vista numa democracia por mais frágil que seja. Está chegando a hora de colocar tudo em seu devido lugar”. A referência ao STF é inequívoca. Parece até que ser bolsonarista gera uma espécie de imunidade à ação do Judiciário. Aliás, essa mesma turma aplaudia o STF que não paralisou o impeachment contra Dilma Rousseff, apesar das várias ações com esse objetivo propostas perante a Corte Máxima.
Comparem-se as declarações militares tupiniquins com recente manifestação do general Mark Milley, maior autoridade militar dos Estados Unidos. “Eu não deveria ter estado lá [com Trump na famosa caminhada rumo a uma igreja]. Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna. Como oficial da ativa uniformizado foi um erro com o qual aprendi. Devemos defender o princípio de um Exército apolítico que está tão profundamente enraizado na própria essência de nossa república. Isso leva tempo, trabalho e esforço, mas pode ser a mais importante coisa que cada um de nós faz a cada dia”, disse.
Ocorre que os acontecimentos da terceira semana do mês de junho de 2020 mudaram significativamente esse inacreditável “debate” acerca de golpes, intervenções e fechamentos (do Congresso e do STF). A prisão do sumido Fabrício Queiroz numa casa do advogado dos Bolsonaros praticamente retirou da pauta a pretendida (por alguns) movimentação dos quartéis. O festival de supostos ilícitos apurados com a participação do amigo-irmão Queiroz (rachadinhas, fantasmas, lavagem de dinheiro, envolvimento com milícias, entre outros) lança fortes e consistentes indícios acerca da participação da família presidencial em “rolos” de vários tamanhos. No mínimo arranhada fica a imagem (artificialmente construída) do inoxidável e indefectível “mito”.
Surgiu, então, uma indagação crucial. Os militares estão dispostos a “atravessar o Rubicão”? Para defender quem? O Queiroz? A família presidencial? Para arquivar apurações de supostos ilícitos dos palacianos? Para satisfazer os gostos, desejos e desvarios de certos apedeutas palacianos? Obviamente, a missão constitucional das Forças Armadas não merece tamanho apequenamento. E os militares sabem disso.
Nos últimos dias, o assunto voltou aos noticiários. “O presidente Jair Bolsonaro esteve a ponto de intervir no Supremo Tribunal Federal(STF) no dia 22 de maio de 2020, segundo aponta reportagem da revista Piauí, assinada pela jornalista Monica Gugliano. A ideia do chefe do Executivo, emitida em uma reunião ministerial, era enviar militares para destituir os 11 membros do STF, substituindo-os por militares, para restabelecer a autoridade do presidente, que, em sua visão, vinha sendo vilipendiada pela Suprema Corte. A reportagem afirma que naquela manhã, o entra e sai do gabinete presidencial foi grande e as conversas giraram entorno da definição da estratégia jurídica e de comunicação, sobre como se daria o golpe, de maneira a parecer que fosse algo legalmente aceito”.
A questão jurídica em torno da inteligência do art. 142 da Constituição é, no mínimo, curiosa. Entretanto, permite compreender algumas lições básicas de hermenêutica no campo do Direito. Diz o referido artigo: “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem./§1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas”.
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De início, é importante comparar esse texto com a redação do enunciado pertinente na Constituição de 1967/1969. A redação anterior possuía o seguinte formato: “Art 92 – As forças armadas, constituídas pela Marinha de Guerra, Exército e Aeronáutica Militar, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei./§1º – Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os Poderes constituídos, a lei e a ordem”.
Percebe-se que a diferença está no papel das Forças Armadas na defesa da lei e da ordem. A Constituição de 1988 exige (a anterior silenciava) a iniciativa de um dos poderes constituídos para atuação das Forças Armadas na proteção da lei e da ordem.
Outro ponto crucial de diferenciação é a definição da edição de uma lei complementar para fixar normas gerais relacionadas com a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas. Esse diploma legal foi introduzido na ordem jurídica brasileira como a Lei Complementar n. 97, de 9 de junho de 1999. Cumpre observar que a referida lei complementar, mesmo com alterações posteriores, limita-se a explicitar atribuições subsidiárias, além das constitucionais. Nada nesse diploma legal permite identificar alguma competência relacionada com o fechamento de algum Poder da República ou supressão da ordem democrática. Afinal, o Estado Democrático de Direito, proclamado no artigo primeiro da Constituição, está assentado no funcionamento regular de todos os Poderes e das instituições da sociedade civil, no exercício dos mandatos eletivos em curso e observância efetiva dos direitos fundamentais.
Façamos um exercício mental. Vamos admitir a atuação (intervenção) das Forças Armadas para o fechamento do Supremo Tribunal Federal (e outros tribunais?) e/ou do Congresso Nacional (e parlamentos estaduais e municipais?). Os governadores e prefeitos também seriam atingidos? Registre-se que estamos tratando do fechamento físico e da paralisia operacional do exercício das competências exercitadas por centenas e centenas de instituições e respectivos membros.
A primeira indagação. Quem decidiria e como seria o procedimento para adotar esse posicionamento? Onde está posta a regra de competência dessa autoridade ou colegiado para adotar tal decisão? Reconheço, aqui, com todas as letras, a minha ignorância. Em mais de 30 (trinta) anos de estudo e trabalho com o direito brasileiro, jamais encontrei ou tive notícia da existência de enunciados normativos sobre o assunto.
Vamos a segunda questão. Se a “medida” não atingir todos, quais os critérios previstos na ordem jurídica para estabelecer as exceções? O presidente da República seria mantido no cargo? Qual a motivação, prevista em lei, para manter o Chefe do Executivo na condição de intocável? Em suma, onde estão escritas, na forma de textos normativos, as hipóteses jurídicas para que alguns sejam alcançados pela “intervenção” e outros não?
Agora, a terceira questão. Quem substituiria as autoridades afastadas? Qual a condição ou status jurídico das autoridades “destituídas” (prisão, garantias, remunerações, etc)? Onde a ordem jurídica brasileira dispõe acerca dessas substituições como decorrências de intervenções supostamente baseadas no art. 142 da Constituição? Como as competências, particularmente as colegiadas, seriam exercidas por esses “substitutos”? Quais comandos normativos regulam essas atividades nesse contexto “interventivo”?
Ademais, o art. 5o., inciso XLIV da Constituição, qualifica como “crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. Não faz o menor sentido lógico-jurídico ou político que as Forças Armadas, instituições estatais permanentes comprometidas por expressão disposição constitucional com “a garantia dos poderes constitucionais”, possam realizar de forma legítima aquilo que o constituinte definiu como crime (inafiançável e imprescritível) quando operado por grupos armados, civis ou militares.
Ainda num exercício prospectivo, impõe-se perguntar como seria tratada a liberdade de imprensa. Todos ou só alguns órgãos de imprensa seriam “fechados”? Como seria operacionalizado esse movimento? A internet no Brasil seria “derrubada” ou “controlados” certos sites ou redes sociais? Onde estão postos os textos normativos reguladores dessas ações estatais?
Os desdobramentos políticos, econômicos e jurídicos no plano internacional seriam múltiplos, profundos e nefastos. Numa frase, dita e repetida com frequência, a nação brasileira seria considerada e tratada como um verdadeiro pária na sociedade internacional.
Dito isso, é relativamente fácil concluir que a ordem jurídica brasileira não é compatível com uma hermenêutica que admita qualquer espécie de intervenção militar para afastar o funcionamento ou exercício pleno das competências das mais importantes instituições desenhadas pela Constituição. Trata-se, é disso que se trata, expressão muito usada por certo ministro do STF, de golpe ou ruptura inconstitucional da ordem democrática obnubilado pela nomenclatura de intervenção.
A ausência de respostas para as perguntas antes postas denunciam um quadro jurídico aberrante, num plano meramente teórico ou hipotético, para a tese da movimentação institucional pretoriana contra Poderes da República. Em outras palavras, trata-se de um verdadeiro terraplanismo constitucional, na bem cunhada expressão que circula nos meios jurídicos. A chamada “interpretação absurda” subjacente não se sustenta por inapelável falta de lógica, fundamento técnico-jurídico e sentido.