Os processos históricos que ora vivenciamos têm no centro dos conflitos a histórica tentativa de controle das mentes e os corpos dos humanos, segundo os interesses de grupos que controlam até mesmo Estados.
Dessa maneira, pretendem moldar a própria democracia para que os interesses permanentes dos coletivos que dominam a economia e os processos de distribuição de oportunidades e renda sejam sempre favorecidos, segundo suas visões de mundo. Impossível tratar de eleições sem um breve mergulho na origem da tomada e uso do poder que se serve, oriundo de práticas e conceitos históricos ético-culturais, que se consolidaram definindo, justificando e legitimando relações desiguais entre os povos.
A trajetória humana foi definida por matrizes culturais desenhadas por interesses permanentes de poder, seja por matrizes circulares e cooperativas, até hoje bastante vulnerabilizadas no contexto global, seja por aquelas em que poder associou-se à dominação de territórios, bens e corpos e mentes. Assim se estruturou a base do padrão de dominação intercontinental, que é muito bem sucedido no Brasil.
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Não promovemos , neste século XXI, para além da retórica, escolha civilizatória por sustentabilidade e direitos humanos que seja capaz de romper com matrizes sociopolíticas que se universalizaram alimentando-se do poder heteronormativo, do compadrio que é conivente com corrupção, ou a ela faz vista-grossa, que afasta mulheres e coletivos étnico-raciais não brancos do poder, vampirizando a energia social.
> Sem regulamentação, candidaturas coletivas desafiam TSE e causam dúvidas nos eleitores
No Brasil, que em plena pandemia causada pela covid-19, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a participação de pretos e pardos chega a 49,9 % de todas as candidaturas. No entanto, no caso de disputas majoritárias cai para 35%.
PublicidadeAo decidir que critério racial para divisão de tempo de propaganda no rádio e na televisão e do fundo eleitoral valem para as eleições desse ano, a Suprema Corte mexeu em um importante nó, que limitava a possibilidade objetiva de assentos nas casas legislativas e no executivo serem ocupados por pretos. Nossa nação ainda fica a dever aos indígenas o financiamento paritário às suas campanhas.
Também há, apesar das cotas, severa disparidade no financiamento das campanhas das mulheres. O discurso a respeito do financiamento às candidaturas negras está longe de corresponder à real importância do feito. 52,49% das pessoas que votam são mulheres, em um total de 147.918.483 eleitores brasileiros.
De fato, como afirma o professor e sociólogo Silvio Almeida, o Brasil “precisa se livrar da alma de senhor de escravo”, que certamente foi forjada na matriz de domínio, construída através dos séculos, que moldou o ocidente, estruturou o capitalismo e se mantém organicamente nas estruturas institucionais, inclusive acadêmicas nos diversos países.
Há resistência e atraso, por parte de vários partidos, no repasse do devido recurso. Desta forma a desigualdade se mantém e a conquista da paridade como referência ética tem demandado mobilização de candidatas e candidatos negros.
A qualidade da democracia, com possibilidade de ser participativa, com equidade de gênero e étnico-racial, por certo, é ainda uma vitória a se perseguir. Já neste caminho, as mulheres negras em campanha, enriquecem a campanha de 2020 com suas candidaturas articuladas coletivas, propostas objetivas e pertinentes para mandatos de representantes nas câmaras municipais, escuta popular e práticas de circularidade na política, que incluem a identificação das necessidades pelos conjuntos dos cidadãos, cuidado do território e planejamento de políticas públicas distributivas.
Desse modo, ganha corpo no Brasil uma campanha para que negros e brancos votem em candidatos e candidatas negros (pretos e pardos) como forma apenas de romper com o racismo, mas de praticar o antirracismo. O site da campanha é este aqui. A campanha por votos indígenas pode ser acessada aqui.
Impossível não avaliar o processo da Georgia no contexto das eleições nos Estados Unidos, onde os conflitos entre os interesses permanentes levaram à escolha dos negros por Joe Biden e Kamala Harris, como forma de luta contra a injustiça racial.
A diversidade de interesses, tanto de negros quanto de latinos naquele país, em particular na Georgia, foi bastante explorada por Trump, com propostas de programas de apoio a pequenos empreendimentos (Platinum Plan) de processar a Ku Klux Klan (KKK) como terrorista, além de ter apresentado um sedutor programa de inclusão.
No entanto, o entendimento da pressão por mobilidade social individualizada, que não transforma as realidades históricas, enfraqueceu a estratégia trumpista. Falou mais alto a confiança em Kamalla Harris, que entregou sua história para ser vice de um candidato cujos limites conhece, mas que apostou nas possibilidades de conquistas objetivas, após o peso das mobilizações intituladas Vidas Negras Importam. Lembrei-me de Amilcar Cabral: “Um dos erros mais sérios, senão o mais grave, cometido pelas potências coloniais na África, pode ter sido ignorar ou subestimar a força cultural dos povos africanos.”