Ao atiçar emocionalmente toda noite a revolta, inviabilizando o frágil governo de transição fruto do impeachment, a grande mídia vestiu a carapuça que a velha paranoia de esquerda lhe estendia e – penso que inadvertidamente – criou o caldo de cultura para uma revolta raivosa que encontrou seu mito no ex-capitão indisciplinado, sindicalista militar, que veio a tornar-se uma espécie de Lula pelo avesso.
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Durante longos anos, a direita brasileira esteve bastante ausente, salvo no campo da economia, do debate de ideias. Uma voz de direita culta e ponderada foi perdida com a morte de José Guilherme Merquior, no início dos anos noventa. A direita política, com seus líderes tradicionais como Paulo Maluf, Antônio Carlos Magalhães e Jânio Quadros, não professava doutrinas ou discursos ideológicos; era pragmática ao extremo e soube se associar tanto ao PSDB quanto ao PT quando isso lhe interessou. Em sua passagem meteórica pelo poder e pela glória, Fernando Collor de Mello também não reivindicou, fora da economia, um sistema de pensamento conservador claro. Mais: promoveu uma forte aproximação com o ambientalismo, à sua maneira. Na Europa, a questão de mudanças climáticas permaneceu fora dessa dicotomia esquerda versus direita apesar, obviamente, da maior ligação da última com os grandes grupos econômicos. Preocupações com o clima penetraram, não sem contradições, na visão das multinacionais e em partes do sistema financeiro internacional.
A vitória da extrema-direita nas eleições de 2018 não me surpreendeu nem um pouco. Vi-a chegando claramente desde a desastrosa reeleição de Pirro de Dilma Rousseff, em 2014. Antes mesmo daquela eleição, eu já tinha a sensação de que o PT permanecera demasiado tempo no governo e não havia aproveitado os anos de vacas gordas para enfrentar problemas estruturais do país. Promovera, à guisa de maior justiça social, um aumento real do poder de compra de amplos segmentos pobres, incorporando-os ao mercado de consumo, aumentando o salário mínimo mas, sobretudo, com base no crédito. O problema é que além de não ser propriamente desenvolvimento social, isso era reversível. Também criara uma forte animosidade na classe média tradicional, à qual infligira a percepção de perda de status e uma convicção de que os governos do PT serviam aos muito pobres e aos muito ricos ferrando quem estava no meio.
Essa animosidade de fato prejudicou o PT historicamente, pois anulou da memória das pessoas o muito que houve de positivo nos governos de Lula, sobretudo no primeiro. Negá-lo simplesmente não é realista. Lula deixou seu segundo governo com 86% de aprovação, elegeu seu “poste” e, com todo o enredamento na Lava Jato, liderava as pesquisas para as eleições de 2018 até sua prisão. É verdade que um imenso contingente da suposta nova classe média que ascendeu ao maior consumo nos seus governos passou a odiá-lo, mas isso apenas demonstra como são volúveis os caminhos da vida e da política.
Porém, quem seria essa nova força que poderia, no jargão político, ocupar esse espaço? A figura óbvia teria sido Marina Silva. Só que ela – eu já sabia perfeitamente – não era talhada para isso. Eduardo Campos poderia ter sido, mas, tragicamente, o destino o levou. Por outro lado, era plausível supor, até pelo pêndulo natural da alternância, que a propensão maior é que viesse pela direita. A direita política no Brasil parecia ausente, encontrava-se em estado de catalepsia e em grande parte cooptada fisiologicamente pelo PT.
A direita brasileira, pós-ditadura, nunca fora lá muito ideológica. Gostava também de mamar nas tetas do Estado e se acomodara às mil maravilhas aos dois governos do Lula, que sabia manejá-la bem com muita vaselina e jeito. Ver o Maluf e o Delfim Netto apoiando o governo do PT foi um espetáculo inenarrável. Mas, um dia, o brinquedo quebrou. A partir de 2013, passou a se oferecer um terreno fértil para o ressurgimento da direita. No caminho para o impeachment, o país reviveu o espírito das Marchas da Família com Deus pela Liberdade – com maior participação de uma classe média baixa e de pobres – que, desta feita, não resultaria em golpe militar, mas em uma robusta e inquestionável goleada eleitoral. O Ronaldo Caiado era quem mais se aproximava de uma direta assumida. Quando deputados, nos respeitávamos. Eu admirava seu talento e competência, ainda que discordássemos em quase tudo. Era o melhor quadro da direita, mas não foi ele quem liderou sua volta ao grande jogo. Isso se deu pelas mãos do mais improvável dos personagens: o deputado Jair Bolsonaro.
Convivi com o Jair dois anos como vereador nos anos oitenta. Fomos ambos eleitos em novembro de 1988. Fui o mais votado, com 43 mil votos, e ele, tido como um “sindicalista” dos militares e envolvido em um rocambolesco episódio de bombas em quartéis – condenado em primeira instância, tinha sido absolvido pelo Superior Tribunal Militar por falta de provas –, teve, se bem me recordo, uns três mil, apenas. Vejam como sopram loucamente os ventos da política.
Tínhamos uma relação em geral tranquila e um cumprimento de praxe entre nós. Ele dizia: “E aí, verde?” E eu respondia: “E aí, verde-oliva?” No que pesem os respectivos históricos e seu discurso frequente em feroz defesa do regime militar, não havia entre nós o tipo de animosidade pessoal que ele entretinha com outros vereadores mais à esquerda, que guerreavam incessantemente com ele na tribuna por obrigação ideológica.
Ocasionalmente, polemizávamos, mas, de forma geral, mantendo certa amabilidade, apesar de eu ter sido guerrilheiro nos anos setenta e ele, mais tarde, um admirador dos que, à época, nos derrotaram recorrendo a torturas e execuções. Eu não entrava naquele jogo de hostilidade histérica, oportunista, mutuamente vantajosa para chamar atenção na mídia, que adora cobrir bate-bocas grosseiros entre políticos e agrada as respectivas bases de gregos e troianos que cobram “combatividade”. Jair, conquanto pouco eloquente, propenso a gafes homéricas e equívocos factuais abissais, conseguiu jogar esse jogo com maestria. Soube se dar bem em cima de seus habituais antagonistas. Por mais que perdesse sempre na argumentação de plenário e tribuna, sempre faturava alguma coisa naqueles arranca-rabos caça-mídia. Todos apareciam e ficavam felizes mas ele faturava muito mais sem que percebessem.
A mim, enchiam do mais profundo enfado polêmicas sobre os tempos da ditadura e da luta armada, razão pela qual, em geral, me recusava a dar palestras sobre o tema anos de chumbo quando era convidado por escolas e universidades. Leiam Os carbonários, aconselhava. Querem palestra? Posso falar de ecologia, mudanças climáticas, questões urbanas, gestão local, política internacional. Luta armada e 68 não são mais o meu assunto. Para mim, aquela guerra acabara com a anistia, de cuja revisão, como já expliquei aqui, discordava abertamente. Evitava ficar gastando saliva com aquilo, velho de meio século. O Jair estava mal informado, mesmo do ponto de vista de suas posições, sobre inúmeros episódios em relação aos quais ouvira o galo cantar sem saber aonde. Eu havia vivido aquilo. Ele, cinco anos mais jovem, conhecia de orelhada.
Logo depois daquela minha visita turística a Havana, no réveillon de 2014, alguns colegas da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional me sugeriram dar um informe da viagem, embora tivesse sido a passeio e, fique claro, com todas as despesas custeadas por mim. Contei o que vi e fiz algumas análises prospectivas. Defendi que o Brasil deveria, sim, manter laços econômicos e se preposicionar para ser um dos grandes players em uma futura Cuba com economia de mercado. Que, por essa razão, fazia sentido o empréstimo do BNDES para a construção do Porto de Mariel, tão criticado por setores da oposição junto com outros financiamentos, esses, de fato, temerários, senão criminosos, que os governos do PT andaram fazendo. Aquele fazia sentido estratégico e comercial. E Cuba, à diferença da Venezuela ou da Guiné Equatorial, vinha sendo adimplente.
Manifestei minha impressão de que dentro de mais ou menos uma década Cuba seria uma economia de mercado. Tinha uma mão de obra bem formada e barata, e um enorme potencial de investimento por parte da segunda geração de cubanos-americanos. Iríamos disputar negócios ali com europeus, asiáticos e norte-americanos. À medida que prosperassem a economia e a população melhorasse seu padrão de vida, haveria maior chance de uma democratização.
O Jair, naquela manhã, chegou à sala da Comissão bem no final da minha exposição e sentou-se na minha frente. Ouviu apenas o finalzinho. Pediu a palavra e logo irrompeu em uma diatribe furiosa:
– O deputado Sirkis, que andou envolvido no regime militar, agora quer que os cubanos esperem mais dez anos para serem livres!
– Peraí, deputado. Me envolvi foi contra o regime militar, não é?
– Isso mesmo. Vossa Excelência sequestrou o embaixador americano e o manteve por 41 dias em cárcere privado – atacou, tomado por uma fúria súbita que, na hora, continuei sem entender.
– Não foi o americano. Esse foi o Gabeira. Foi o suíço – retruquei, rindo e provocando risadas também na sala.
– Ele confessou! Ele confessou! – berrava o Jair.
Continuei sem entender. Não havia ali, de fato, discussão sobre Cuba. Eu torcia para que o país virasse uma economia de mercado e uma democracia. Já a minha participação em 1970 no sequestro do embaixador Giovanni Enrico Bucher e sua troca por 70 presos políticos era um episódio amplamente conhecido da história do Brasil e objeto de um longo capítulo do meu livro Os carbonários. Aquela discussão em 2014, quarenta e quatro anos mais tarde, soava francamente surrealista.
Só alguns dias depois entendi o porquê de toda aquela esquisitice. A assessoria do Jair divulgou no YouTube: “Bolsonaro desmascara Sirkis”, editando as imagens da TV Câmara de maneira a formar uma historinha em que ele parecia conduzir um interrogatório, me levando a “confessar” um “crime do passado” em primeira mão. O filmete teve umas três mil visitas. Depois, percebi que ele dedicava boa parte do seu tempo a criar incidentes desse tipo para montar esquetes editados e divulgá-los na internet. Naquele dia, por acaso, sobrou para mim. Fui o seu sparring involuntário.
Já debatera muito ao longo dos anos, civilizadamente, os anos de chumbo com gente do outro lado. Lembro de longas discussões com o senador Jarbas Passarinho, nosso nêmesis dos tempos do movimento estudantil. Eram ricas, estimulantes. Confesso que passei a gostar dele. Embora o Jair fizesse frequentes alusões aos anos de chumbo para defender o aparato de repressão, as torturas e seu ídolo, o falecido coronel Carlos Brilhante Ustra, chefe do DOI-CODI de São Paulo, parecia ter escasso conhecimento factual dos episódios daquela época. Também não sabia defender o regime militar com dados ou argumentos consistentes, como vários outros políticos de direita que encontrei.
Na época, achei aquilo tudo um grande nonsense e me diverti assistindo ao vídeo que ele tinha armado para cima de mim. Optei por não denunciá-lo ao YouTube. Preferi deixá-lo ali, como uma didática do fake. Na vida real – se é que se pode chamá-la assim atualmente – minha relação com o Jair continuou razoavelmente cordata. Via seus arroubos na Comissão e, algumas vezes, no plenário como maneiras de chamar a atenção, fixar sua grife, sua imagem de marca.
Havia um punhado de outros deputados, em geral defensores de grileiros e desmatadores, da bancada ruralista, com os quais eu tinha, de fato, uma relação pessoal hostil. O Jair não fazia parte desse rol. Eu o observava, em modo quase jornalístico, quando disparava aquelas suas diatribes direitonas. Soltava aquilo e depois ficava olhando, travesso, para ver o efeito da sua provocação nos colegas da esquerda combativa. Aquilo tinha um quê de provocação, de pirraça, depois virava meme no meio digital. Eu não percebia que assistia ali aos primórdios de uma futura vitória acachapante do virtual sobre quaisquer vestígios do real.
Ocasionalmente, eu discutia suas fobias comportamentais, tentando puxar para o factual, sem aquele furor dos colegas de esquerda e extrema-esquerda com os quais ele ardilosamente contracenava. Eu preferia o humor, como em outra ocasião, na Comissão, em que ele criticou:
– O Sirkis se diz ecologista, mas ignora o maior problema ecológico da humanidade.
– Jair, qual é, então, o maior problema ecológico da humanidade? – perguntei.
Ele sentenciou:
– A superpopulação.
– Mas, Jair, você acaba de me dar um grande argumento em prol do casamento gay!
Gargalhada geral na Comissão. Ele também riu.