Você sabe o que é sharenting? Esse termo em inglês está cada vez mais comum no mundo da internet. Ele é uma soma das palavras em inglês para pais (parents) e compartilhamento (sharing). Ou seja, está em curso um fenômeno de superexposição das crianças na internet, muitas vezes, até mesmo antes de nascer.
Você sairia com um álbum de família embaixo do braço e mostraria as fotos para quem passa na rua? É claro que não. O sharenting é quase a mesma coisa. Você não sabe quem está do outro lado da tela. Isso dá uma falsa segurança de que você está somente entre amigos. Ainda que saiba que a rede é global, que existem redes de criminosos que atuam nela, que o cyberbullying é uma dura realidade e que o assédio sexual e a inteligência artificial podem pegar uma foto de uma criança para alterá-la e alimentares redes internacionais de pedofilia.
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Eu conversei com a Fabiani Borges, ela é advogada, especialista em proteção de dados e grande estudiosa do tema. O que mais intriga no tema da superexposição da infância na internet é a falta de esclarecimento dos pais sobre os riscos que estão associados a esse hábito que parece ser tão inocente, explica Fabiani Borges.
“Existem cada vez mais adolescentes e jovens adultos do mundo digital que já nasceram digitalmente e queixam-se dessa pegada digital que os pais deixaram. Isso é inapagável. O que você coloca na internet, vai ter muita dificuldade de apagar. Se prolifera muito rápido e entram questões da privacidade dessas crianças e dos adolescentes que muitas vezes não têm como se expressar, pois o pai e a mãe decidem a vida dos filhos. Isso tem consequências jurídicas muito grandes. Tem que pensar uma forma de educar esses pais analógicos a pensarem qual o tipo de prejuízo que eles estão fazendo ao praticarem o sharenting, essa superexposição. Temos visto pessoas famosas já criarem essa conta desde quando estão grávidas, com as imagens intrauterinas. Algo que você está alimentando o algoritmo, que tem uma capacidade de previsibilidade, ou seja, de fazer a imagem daquela criança até a sua vida adulta.”
Recentemente, a grande mídia notificou a história de um casal que participou do Big Brother Brasil, e que revelou que sua filha de 7 anos já estava sofrendo ataques na internet. Por outro lado, a rede mundial de computadores é usada para compartilhar informação, educar e também, como entretenimento. Como equilibrar esse desafio de utilizar os benefícios da sociedade conectada e evitar os riscos?
PublicidadeÉ importante ter, em primeiro lugar, bom senso. Fotos de crianças sozinhas, fotos de crianças nuas ou até mesmo banguelas podem virar memes com facilidade. É preciso entender que a internet é para sempre, e que nem todos são “amigos virtuais” dentro da rede.
A Constituição Federal (1) e o ECA (2), o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 5º, entre outros, reforça a garantia da participação efetiva de crianças e adolescentes nas decisões e o respeito às suas opiniões. Já os artigos 17 e 18 do ECA asseguram o direito à identidade, à personalidade, a autonomia e também a proteção contra tratamentos vexatórios ou constrangedores.
O mau uso da internet é global, e não estamos falando apenas de fake news. Só em 2023, a SaferNet Brasil recebeu 71.867 denúncias de imagens de abuso e exploração infanto-juvenil na rede, o que é um recorde histórico, com aumento de 70% (3), e isso é apenas a ponto do iceberg, obviamente.
A advogada Fabiani Borges lembra que os dados que postamos na internet são utilizados comercialmente, inclusive para a prática de crimes, mas sempre com esse viés de que alguém está monetizando este conteúdo e ganhando dinheiro com isso, inclusive as plataformas digitais.
“Essas informações podem ser usadas para o bem, como para políticas públicas, mas podem ser utilizadas para influenciar pessoas, para pedofilia ou pornografia infantil, para tráfico de pessoas, tráfico sexual. Há uma série de usos desses dados que permitem algum tipo de vantagem financeira, de engodo contra o próprio adolescente ou a criança, mas esses dados são muito valiosos. Recentemente, a grande mídia noticiou como a imagem de crianças e adolescentes estava sendo utilizada indevidamente na Europa, fruto de uma pesquisa do braço da ONU de proteção da criança e do adolescente, que viu que eles não tinham o consentimento dos pais para usar essas imagens, que eram usadas para fins de publicidade nos países europeus.”
Mas não temos a Lei Geral de Proteção de Dados (4), que cria uma regra especial para uso de dados de menores na internet?
A LGPD prevê, no seu artigo 14, que os dados de crianças e adolescentes só podem ser utilizados após o consentimento dos pais. Não é o que ocorre na prática. Por falha das plataformas, não é exigido nenhum tipo de verificação das contas criadas nas redes sociais e a criança, ao abrir o seu perfil, simplesmente informa os dados que deseja. Isso reforça a necessidade de regulação das plataformas, por meio de ações como o PL 2630, 2020, das redes sociais. As empresas têm inúmeros mecanismos para controlar o conteúdo violento contra as crianças e os adolescentes e o mais importante, todas as contas deveriam ser autenticadas, pois a Constituição brasileira proíbe o anonimato. Não haveria abuso infantil se não houvesse tantas contas falsas…
No âmbito da Câmara, temos o PL 4776, de 2023 (5), da deputada Lídice da Matta, que prevê que “as crianças e adolescentes têm o direito ao esquecimento na internet, permitindo-lhes, a partir dos 16 (dezesseis) anos de idade, solicitar a remoção de imagens, vídeos ou informações pessoais publicadas em plataformas ou redes sociais online. Conforme a justificativa no projeto, estudo realizado pela pesquisadora Anne Longfield, em 2018, mostrou que, aos 13 anos de idade, uma criança já possui, em média, cerca de 1.300 fotos circulando na rede. Essas fotos, muitas vezes acompanhadas de informações pessoais, permanecem na rede, podendo ferir a dignidade de crianças e adolescentes ou até mesmo cair nas mãos de redes de criminosas.
Enquanto isso não acontece, a responsabilidade fica sobre os pais, conforme lembra Fabiani Borges, lembrando que simplesmente parar de postar imagens de seus filhos crianças e os adolescentes nas redes pode não ser a melhor saída.
“Eu não recomendaria isso de um modo geral, a gente não tem como barrar a inovação. Que essas crianças tenham acesso, para crianças autistas, por exemplo, é mais fácil a interação pelas telas. Eu recomendaria que fiscalizem. Existem filtros possíveis de serem colocados, as contas podem ser marcadas como privadas, o celular do seu filho não pode ser usado de maneira aleatória, como se tivesse poder sobre ele. Que você tenha como restringir a um número de pessoas, manter a conta privada. O ideal é fazer uma fiscalização, a cada três ou quatro dias, olhar o celular. Isso é trabalho dos pais.”, diz Fabiani Borges.
O crime não escolhe as suas vítimas. E os mais vulneráveis estão mais expostos. Nesta série, nós discutimos a proibição da publicidade para crianças, discutimos os cuidados em tirar o celular da sala de aula para diminuir a ansiedade das crianças e agora, o combate ao sharenting e à superexposição das crianças na internet.
É preciso plantar nas famílias um sinal de alerta, uma bandeira amarela, para que as crianças não sejam usadas, abusadas e colocadas em risco na rede mundial de computadores. Não podemos jogar o bebê fora com a água da banheira, a internet veio para ficar. Precisamos sim cuidar das nossas crianças na rede, cuidado não é vigilância. É um ato de amor para com seus filhos.
O alerta é: pais, fiscalizem seus filhos na rede. Criança não precisa de privacidade no sentido estrito. Criança precisa de cuidado, orientações e apoio em todos os momentos da sua vida.
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(1) https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
(2) https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
(4) https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm
(5)https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2338101&filename=PL%204776/2023
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