Um quadro de 15 x 15 centímetros retratando o presidente da Câmara dos Deputados dentro de uma lixeira, disposto em um mural com um total de 750 imagens representando mensagens e orientações políticas variadas, foi o estopim para o fechamento de uma exposição de arte com orçamento de R$ 250 mil – e, se tomarmos o noticiário pelo valor de face, foi responsável por elevar a tensão entre o presidente Lula (PT) e o comandante da Casa Baixa do Legislativo, Arthur Lira (PP-AL), acelerando um processo que culminou na demissão da então presidente da Caixa Econômica Federal, Rita Serrano.
“Veja como a gente é poderoso”, ironiza a pesquisadora Sylvia Werneck, curadora da mostra exibida no espaço da Caixa Cultural de Brasília, em entrevista em Congresso em Foco. “Que poder tem uma exposição!”.
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Aberta em 18 de outubro, a exposição “O Grito!” ficou menos de uma semana disponível para visitação para o público em geral. Após a repercussão da imagem, a Caixa cancelou a mostra alegando ter identificado na obra uma manifestação com viés partidário, o que contraria as regras do edital.
A peça em questão se chama “Coleção bandeira [fragmento #2]” e é de autoria da artista Marília Scarabello – o mural inteiro, não a imagem com Arthur Lira. É uma distinção importante, segundo a artista. “Me incomodou muito ver essa imagem, de um detalhe, do Lira, um quadradinho, ter toda uma narrativa construída em torno de um trabalho que é uma colcha de retalhos, uma espécie de colagem com imagens de bandeiras manipuladas pela população”, diz Marília.
Marília não concebeu nem confeccionou a imagem de Arthur Lira na lixeira. Ela faz parte de uma coleção de artes feitas por outras pessoas e reunidas pela artista, todas envolvendo alguma espécie de modificação feita em cima da bandeira nacional. O trabalho dela foi coletar estas imagens e, nos espaços expositivos, exibir parte desta coleção em uma montagem.
Tanto artista quanto curadora relatam perplexidade com a comoção em torno da obra. “O que eu quero é só explicar o trabalho da Marília”, diz Sylvia Werneck. “Não tenho nada a ver com o Lira. Nem quero ter.”
PublicidadeA obra
A exposição “O Grito!”, realizada na Caixa Cultural de Brasília, apresentava o trabalho de sete artistas: Élcio Miyazaki, Evandro Prado, Gina Dinucci, Marília Scarabello, Moara Tupinambá, Paul Setúbal e Yara Dewatcher. A premissa era expor os trabalhos à luz da efeméride de 200 anos de independência do Brasil, completados em 7 de setembro de 2022.
“Coleção bandeira [fragmento #2]”, então, compartilhava o espaço da exposição com as obras de outros seis artistas. Visualmente, o trabalho de Marília Scarabello aparecia como um mural, um mosaico de 750 imagens de 15 X 15 centímetros cada uma. É o que se chama de um “lambe”: as imagens tinham o papel como suporte e foram coladas na parede.
Marília explica que a obra é um “site-specific”, ou seja, é montada daquela forma apenas naquele espaço. “Eu adapto o trabalho para aquela parede que me deram. Ele foi feito para lá. Pela natureza do lambe, ele é efêmero e não comercializável”.
As imagens do mural não foram feitas pela artista. Todas vieram de um arquivo: nos últimos anos, Marília vem coletando toda e qualquer imagem que passe em sua frente e envolva alguma modificação na bandeira nacional. “Em 2016, mais ou menos, percebi que as pessoas estavam fazendo intervenções na bandeira para se manifestar: desejos, frustrações, revoltas, anseios, desabafos, visões políticas. E comecei a achar interessante agrupar isso”.
Não há critério político na seleção. Qualquer coisa vale, explica Marília, desde que referencie a bandeira nacional – “memes, charges, imagens de obras de artistas. O acervo tem bandeiras pró-aborto e contra o aborto, pró-Lula e contra Lula, ciristas, bolsonaristas”.
A curadora Sylvia Werneck reforça: “Não há manifestação político-partidária. Tem de todos os lados. O trabalho fala sobre colecionar imaginários de todas as ordens”. Até por conta desta amplitude, Sylvia não vê razão para associar a obra especificamente ao presidente da Câmara. “O Lira não tem nenhuma importância no trabalho. Podia ser um alienígena”, afirma.
Esse arquivo vem sendo publicado nas contas @colecao_bandeira e @colecao_bandeira_2, na rede social Instagram. Segundo a artista, cerca de duas mil imagens já foram publicadas.
A repercussão
A mostra “O Grito!” foi aberta para visitação geral no espaço da Caixa Cultural em Brasília no dia 18 de outubro, uma quarta-feira. Na noite anterior, 17, foi realizado um coquetel de abertura, o que é de praxe nesse tipo de exposição.
Em 22 de outubro, domingo, o influenciador digital Evandro Araújo publicou um vídeo a respeito da mostra, chamando-a de “lixo”, “bizarrice” e “manifestação política”. Na gravação, Evandro se detém por alguns segundos na imagem de Lira, Damares e Paulo Guedes na lixeira e diz que ela é “revanchismo político”. Também mostra e critica outras intervenções sobre a bandeira nacional que apareciam no mural: uma folha de maconha, a frase “manda nudes!”, um pênis cartunesco, o número “22” em tipografia que lembra uma suástica nazista, um desenho do ex-presidente Jair Bolsonaro defecando.
O vídeo foi reproduzido em perfis de parlamentares ligados ao bolsonarismo nas redes sociais, como a deputada Bia Kicis (PL-DF) e a senadora Damares Alves (Republicanos-DF). Em seu perfil no Twitter, Damares questionou: “Isto é arte?”.
ABSURDO!
Vejam este vídeo do @evandroaraujodf
Isto é arte?
E ainda colocam minha foto!
Já nesta segunda-feira vou fazer um requerimento solicitando informações detalhadas sobre
os valores de investimento de recursos públicos nesta exposição. Quero saber também a… pic.twitter.com/vtufVrbvJq— Damares Alves (@DamaresAlves) October 23, 2023
Em 23 de outubro, segunda-feira, a comoção escalou. A pedido da Caixa Cultural, Sylvia redigiu uma nota para responder às acusações feitas ao trabalho. Eis um trecho do documento (clique aqui para abrir e ler a nota na íntegra):
“As obras Coleção bandeira [fragmento #2] (2023) e Bandeira [fragmento #3] (2023) (outro trabalho de Marília na exposição) foram criadas a partir da coleta de imagens de bandeiras alteradas por pessoas comuns e publicadas nas redes sociais. Coleção bandeira [fragmento #2], um lambe-lambe, é uma reunião aleatória de muitas dessas imagens. Há manifestações de opiniões pessoais, comentários irônicos, críticas e até posicionamentos políticos (das mais variadas posições no espectro político). Como são postagens de perfis pessoais, não passaram por qualquer tipo de filtro ou censura. […]
O fato da exposição incomodar algumas pessoas é prova de que cumpre sua função de problematizar uma narrativa única que só se refere a poucas e específicas figuras como responsáveis pela construção da nação.”
Paralelamente, a repercussão mudava de natureza. Notícias a respeito da exposição começaram a aparecer no início da tarde, mas agora com foco apenas na imagem de Arthur Lira. De acordo com o noticiário, o presidente da Câmara havia se incomodado ao saber de sua imagem no lixo exibida na exposição.
Ao Congresso em Foco, tanto Marília quanto Sylvia disseram ter estranhado o comportamento dos veículos de mídia. O contexto da imagem foi pouco mencionado – um quadro de 15 x 15 cm em um mosaico de 750 imagens, com mensagens políticas diversas e contraditórias entre si. “Se a gente fizesse uma analogia: se fosse uma redação, é como se a mídia tivesse pego uma palavra da redação e batido em cima dessa palavra, insistentemente”, diz a artista. A curadora reforça: “Os veículos de comunicação todos deram ctrl+C, ctrl+V, copia e cola. As pessoas acham que a imagem do Lira é o trabalho inteiro. Não é.”
Na mesma tarde, a Caixa anunciou o cancelamento da exposição, alegando o “viés partidário”. A nota de Sylvia Werneck em defesa da obra não chegou a ser publicada.
A exposição foi desmontada em 25 de outubro, quarta-feira. No mesmo dia, Planalto e Câmara deram sinais de entendimento:
- naquela tarde, o governo federal anunciou a demissão da presidente da Caixa Econômica Federal, Rita Serrano. Em seu lugar entra o economista Carlos Antônio Vieira Fernandes, um aliado de Lira. O presidente da Câmara havia feito a indicação de Vieira Fernandes para o cargo no final de setembro, um mês antes.
- no mesmo dia, a Câmara dos Deputados aprovou o chamado PL das Offshores, um dos projetos de interesse do governo Lula para aumentar a arrecadação. O texto estava parado há semanas na Casa, esperando Lira voltar de uma viagem pela Ásia para ser votado.
Em 26 de outubro, a deputada Bia Kicis associou a demissão de Rita Serrano ao fechamento da exposição ao se pronunciar em plenário: “Quero crer que, inclusive, nós acabamos contribuindo para essa troca, porque a Caixa fez uma exposição vergonhosa com a bandeira do Brasil. Foi denunciado, eu denunciei, e houve então a troca na Presidência”. A negociação para trocar o comando da Caixa por um indicado de Lira, porém, já era amplamente noticiada nos últimos meses. Se a exposição de fato acelerou a demissão de Rita Serrano, o presidente da Câmara saiu beneficiado.
Um espelho
O orçamento de R$ 250 mil reservado para a exposição foi uma das informações noticiadas durante a comoção. Com o cancelamento, porém, esse valor não chegou a ser efetivamente pago pela Caixa. Até agora, o banco desembolsou a primeira de três parcelas, de R$ 75 mil.
“R$ 250 mil é para tudo: transporte das obras, seguro, iluminação, profissionais da montagem, fazer o catálogo, imprimir o material de divulgação, para o cachê dos artistas”, explica Sylvia. “Esse valor é parcelado em três vezes, e a primeira parcela foi para pagar prestadores de serviço. Nenhum artista recebeu um tostão, e é possível que não recebam. Os artistas não vivem de brisa, eles precisam receber”.
“A gente não tem nada a ver com isso”, lamenta a curadora. “A arte é sempre política, mas esse uso dela para fazer política é obsceno. Isso sim é obsceno”.
O fechamento da exposição é um sinal? Ele indica que vai ser preciso sempre considerar o risco político de um trabalho artístico, antes que ele seja instalado em um espaço público? “Aí é que está o perigo”, diz Sylvia. “Acho temerário fazer isso [fechar uma exposição], porque cria um precedente. Todo mundo começa a ficar com medo”.
Questionada com a mesma pergunta, Marília Scarabello prefere ser menos direta: “Essa é uma pergunta que deveria ser feita para o sistema”. Mas, para ela, o trabalho encontrou uma forma de realização justamente por ser uma coleta sem filtro de imagens – o Brasil produziu estas intervenções na bandeira e, agora, o Brasil reage contra elas. “Se as pessoas ficam tão horrorizadas, é mais um espelho do que a gente é do que qualquer outra coisa. Quando essas imagens de bandeiras circulam individualmente, elas não ofendem, exatamente porque estão em algum nicho específico”, explica a artista.
“Nesse sentido, acho que o trabalho cumpriu o papel dele”, completa. “A função do artista não é dar resposta. É fazer boas perguntas”.