Ainda ecoam na imprensa, nas instituições e no imaginário coletivo os efeitos dos graves acontecimentos do início do ano em Brasília. Para um país que chegou a discutir a ideia do brasileiro como “homem cordial”, proposta por Sérgio Buarque de Holanda, fruto do universo rural e colonial em nossa formação, produzindo um povo generoso, hospitaleiro, informal e afetivo, diferente de outros decorrentes de processos de colonização onde a violência foi elemento central, o grave atentado golpista assustou. Certamente, Sérgio Buarque subestimou o grau de violência e coerção presentes no escravismo colonial, na dizimação dos povos indígenas, no combate às diversas revoltas populares e políticas como Inconfidência Mineira, Cabanagem, Revolução Farroupilha, Sabinada, Balaiada, Canudos, Contestado e Revolta da Chibata, entre outras, e nos traços permanentes de racismo, misoginia e homofobia.
Mas nem o mais crítico analista à ideia do brasileiro cordial encontra facilidade para compreender o ódio e a selvageria contra a democracia e o patrimônio público daqueles que quebraram as vidraças das sedes das instituições que encarnam a República, esfaquearam um Di Cavalcanti, quebraram um relógio francês raríssimo do Século XVIII, pertencente a Dom João VI, derrubaram torres de transmissão de energia, planejaram uma criminosa explosão no Aeroporto de Brasília, queimaram carros e agrediram policiais.
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As instituições, a sociedade civil organizada e a opinião pública reagiram com firmeza. Mostra disso é a última Datafolha, que demonstrou o repúdio ao atentado golpista por 93% dos brasileiros. Os aspectos políticos e jurídicos já foram exaustivamente debatidos. Alguns cuidados são necessários. As lideranças políticas das mais diversas correntes ideológicas precisam recuperar os espaços de debate democrático, diálogo, construção de consensos e soluções, sinalizando para cada cidadão que a democracia é o melhor caminho para o equacionamento de nossos problemas. O poder Judiciário, que teve que tomar medidas extremas dada a gravidade excepcional do momento, precisa retomar a normalidade, agir estritamente dentro do que prevê a Constituição e as Leis, evitando o polêmico ativismo judicial e suas exegeses largas sobre os marcos constitucionais e legais. As Forças Armadas e policiais, à parte a correção dos erros que vierem a ser apurados, não devem ser vilanizadas e estigmatizadas, jogando fora todos os avanços obtidos a partir da redemocratização, principalmente após a criação do Ministério da Defesa sob liderança civil.
Mas o que incomoda muito e precisa ter o debate aprofundado é a dimensão sociológica, comportamental, psicológica, da horda que produziu o espetáculo de horror do dia 8 de janeiro de 2023, destruindo o Palácio do Planalto e as sedes do Congresso Nacional e do STF, data que ficará tristemente gravada na história como o maior ataque à democracia brasileira desde a vitória de Tancredo Neves no colégio eleitoral, que pôs fim ao regime autoritário e inaugurou a redemocratização.
Por um lado, como não detectamos o “ovo da serpente” que plantamos a partir de 2013, que esgarçou as relações entre sociedade e sistema político, dando margem para o surgimento de um movimento insanamente radicalizado, violento, irracional, movido à base da cultura do ódio e de fakenews? Por outro lado, do ponto de vista do comportamento individual fica a dúvida: quais os motivos, os elementos, que levaram jovens, idosos, ex-militares, parcela da classe média, empresários, a enfrentar chuva e calor na porta dos quartéis e ao final promover uma burlesca e violenta tentativa de golpe. Qual desfecho esperavam? As Forças Armadas já tinham sinalizado que não iriam intervir. O que acrescenta quebrar patrimônio público e agredir fisicamente as instituições? Eram profissionais da violência ou amadores trapalhões? Ao ver as cenas terríveis lembrei de “Escuta, Zé Ninguém!” de Wilheim Reich. Depois de quebrarem tudo ficaram se perguntando: “E agora? O que fazer? Como se toma o poder?” Como um cachorro de rua que em abalada carreira persegue o carro e não sabe o que fazer quando ele para. Movimento golpista organizado ou um bando de malucos fanatizados? O vácuo de liderança ficou evidente. Não havia tática, estratégia, objetivos e comando claros. Creio que os verdadeiros culpados são os que deveriam ter chamado a liderança da extrema-direita para si e canalizar suas energias para a disputa democrática.
Aos que se filiam a estas crenças e se identificam com suas lideranças – e tenho conhecidos próximos entre eles – conclamo a se filiarem ao PL, disputarem as eleições municipais de 2024, fazerem oposição legítima nas ruas e no Congresso, como nós fizemos na anistia, nas Diretas-já, no impeachment de Collor, no movimento estudantil. Podemos quebrar todos os palácios do mundo sem acrescentar uma vírgula no desenvolvimento social, político e econômico do Brasil. A violência não se revelou uma boa parteira da História. Melhor apostar na liberdade, na democracia e em reformas progressivas.
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