Sei lá se memória auditiva é algo que se aplica ao caso, mas o fato é que seria muito bom manter vivo na lembrança o barulho que as urnas brasileiras fizeram em 2016. Não precisa ter o ouvido de um João Gilberto para perceber que elas falaram, e falaram alto.
No segundo turno das últimas eleições municipais, quase 36% dos eleitores obrigados a votar abriram mão do direito de escolher o prefeito de sua cidade. Num país onde o voto é obrigatório, 21,55% dos eleitores não apareceram para votar, de acordo com os números finais informados pelo Tribunal Superior Eleitoral. Outros 10,62% anularam o voto e 3,68% votaram em branco.
Em alguns lugares, o trio abstenções/brancos/nulos passou do patamar de 40%.
Assim foi, por exemplo, na eleição do prefeito do Rio de Janeiro, em outubro de 2016. E também em agosto de 2017, na eleição suplementar no Amazonas. E aí, mano, pode aumentar o volume. Pauleira total o som que veio do Norte. O governador eleito conquistou a vitória com 33,5% das preferências do eleitorado. O índice de não comparecimento mais nulos e brancos, no turno decisivo de votação, alcançou incríveis 43,4%.
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Mais recentemente, a coisa piorou. No segundo turno da eleição suplementar de Tocantins, o não-voto passou de 50%.
Conheci recentemente um taxista, em São Paulo, já próximo dos 50 anos de idade e que se gabava de jamais ter votado na vida. “Votar pra quê? Você acha que vou perder meu tempo pra eleger alguém que depois só vai mentir, roubar e cuidar do seu interesse?”, perguntava ele. Perguntava é maneira de dizer. Usava da interrogação como arma retórica, não estava a fim de ouvir nenhum argumento em contrário. Política é algo do qual não quer saber e ponto. Começa o noticiário de política na TV ou no rádio e ele simplesmente muda de canal.
PublicidadeHá aqueles que não mudam de canal, mas se recusam a votar em qualquer um dos, literalmente, milhares de candidatos que disputam a nossa atenção durante a campanha eleitoral. “Não acredito em nenhum deles. Vou anular”, ouvi zilhões de vezes e acredito que você também.
Quando tudo está confuso, como ocorre no Brasil de hoje, o óbvio pode ser um bom início para iluminar um pouco a paisagem. E a primeira obviedade, por vezes esquecida, é que uma parcela crescente da sociedade emite sinais de insatisfação com as opções que o atual sistema político oferece.
Para piorar, caem em escala global os índices de apoio à democracia. Em 2010, segundo a pesquisa Latinobarômetro, 61% dos latino-americanos disseram acreditar que a democracia é a melhor forma de governo existente. Em outubro de 2017, essa frase foi endossada por apenas 53%. A pesquisa envolveu 20 mil entrevistas e foi realizada em 18 países. México, com 38%, e Brasil, com 43%, apresentaram os menores percentuais de apoio à democracia.
Levantamento mais amplo, realizado pelo Pew Research Center em 38 nações e também divulgado em outubro do ano passado, mostra que a democracia mantém forte apoio social, principalmente em países desenvolvidos e com bons níveis educacionais. No entanto, cresce a adesão a ideias não democráticas. Para 49% dos respondentes, governos funcionam melhor quando as grandes decisões são tomadas por especialistas, não por representantes eleitos. Foram entrevistadas quase 42 mil pessoas, nos cinco continentes, e os resultados levam a outra constatação interessante. O apoio à democracia sobe quando ela é associada a medidas que ampliam a possibilidade de participação cidadã no processo político, como maior transparência das ações dos governantes ou o direito de a população ser ouvida em plebiscito sobre as principais questões que lhe afetam.
Vejo nesse último dado uma pista importante. É provável que muita gente tenha passado a desacreditar na democracia, ou mesmo repudiá-la, porque quer mais democracia ou melhor democracia. Porque percebe a distância entre a sua vida real e o mundo em que vivem políticos e agentes do Estado em geral. Porque não se vê representada pelos seus representantes. Os exemplos aqui possíveis são incontáveis, mas fiquemos com o mais notório deles: como pode um país de maioria feminina ter menos de um décimo das cadeiras da Câmara dos Deputados ocupado por mulheres?! Repúdio porque a galera não aguenta mais ver boa parte do dinheiro de impostos ser devorado pela corrupção. Que será, segundo revelou em abril de 2018 o Datafolha, o principal critério dos eleitores para a escolha dos candidatos em outubro.
Temos no Brasil uma sociedade vibrante, que mudou muito de perfil nos últimos anos, enquanto o sistema político se enclausurou, se fechou nele mesmo. Virou fonte e beneficiário de privilégios que se perpetuam. Isso vale para os políticos, mas também vale para órgãos e agentes do Estado envolvidos no que seria uma depuração da nossa democracia incompleta. O Judiciário e o Ministério Público que tocam a Operação Lava Jato são os mesmos que reivindicam salários irreais e privilégios como o auxílio-moradia para quem tem casa própria na cidade onde trabalha.
Desde a Carta de 1988 e até alguns anos atrás praticamente todas as forças políticas tinham em comum a defesa de um pacto constitucional que prova, por si só, a importância da política e dos políticos. Um pacto que inclui respeito às regras de uma economia de mercado e às liberdades fundamentais, juntamente com a busca de inclusão social. Graças a ele, vivemos aquelas que foram talvez, com todos os seus percalços e limitações, as duas décadas mais felizes da história brasileira. Elas combinaram a existência de democracia (ainda que incompleta) com significativos avanços econômicos e sociais. Sobretudo nos governos Itamar, FHC e Lula, superamos a inflação, tivemos estabilidade econômica, o país cresceu e melhorou a vida da maioria da população.
Um péssimo sinal é que começamos a assistir a defesa aberta de intervenção militar, mesmo que por uma minoria. A nos deparar com declarações políticas públicas de chefes militares, algo expressamente vedado por lei. A testemunhar a ascensão de um tipo de populismo conservador que deu as caras em outros cantos do planeta com as mesmas assustadoras características que aqui exibem: mistificação, ameaças de reedição do autoritarismo e total desqualificação dos que elegem como adversários (sejam eles outros políticos, o jornalismo ou instituições próprias da democracia).
Impossível dizer o que é pior, se é a descrença que leva à alienação e ao desinteresse pelo destino da coletividade que você integra ou se é essa indignação engarrafada para consumo, que toma a forma de namoro com ditaduras. Na minha visão, e claro que esta é somente a minha visão e posso estar completamente enganado, enfrentar essa onda antidemocrática é a tarefa central de todas as pessoas, organizações e correntes políticas com compromisso com a democracia. Não é preciso só defender a democracia, mas trabalhar para que a democracia faça mais sentido para a população. Que ela se aprofunde e torne seus resultados mais visíveis para todo mundo.
Julgo impróprio atribuir a política e aos políticos todos os males do mundo, assim como rejeito a visão moralista que transforma a corrupção no parâmetro único para análise da história. Um déspota que não rouba, mas comete outras atrocidades, tende a ser bem mais pernicioso que um político corrupto. Mas vejo que há muito a mudar nas práticas políticas. Nada me incomoda mais que aquela ideia de que na política feio é apenas perder. De que os fins justificam os meios. Vem daí o vale-tudo de mentiras, traições, manipulações marqueteiras, roubalheiras e de grosserias que, com toda razão, afasta do debate milhões de eleitor@s. Sabemos que isso voltará a se repetir em breve, na campanha deste ano, potencializado pelo cardápio de bruxarias que as novas tecnologias permitem. Que, no mínimo, estejamos atentos ao teatro dos farsantes e apuremos os ouvidos para escutar os sons que vêm das urnas. Não precisa ser João Gilberto para perceber que elas falam e cantam. Às vezes, também desafinam.
Texto publicado originalmente na Revista da Abrig.