Foi ainda no século 18 que Montesquieu lançou, em O Espírito das Leis, a ideia de um sistema de freios e contrapesos entre os poderes. Pela ideia de Montesquieu, os três poderes têm autonomia para serem exercidos, mas um controla o outro. Isso evitaria, então, que cada um desses poderes cometesse abusos. O tal sistema de freios e contrapesos agiria para evitar esses abusos. Assim, Executivo, Legislativo e Judiciário teriam meios e ferramentas para interferir nas ações dos demais poderes de modo a frear excessos.
A coisa funciona bem se os três poderes estão equilibrados. Fica fácil pensar assim na ideia dos contrapesos. É como em qualquer balança. Se alguém vai pesar um quilo de carne em um prato, coloca pesos no outro até completar um quilo, e verifica se aquele pedaço de carne pesa mais ou menos. Agora, se alguém colocar mais de um quilo de pesos de um lado, não irá levar um quilo de carne. Se alguém colocar dois quilos de carne de um lado e só um quilo de pesos do outro, vai levar o dobro de carne pela metade do preço.
O problema do nosso atual sistema de freios e contrapesos é que, no nosso caso, em função de vários fatores, os pratos da balança estão totalmente desequilibrados. É algo como a célebre frase que marca o clássico das histórias em quadrinhos, Watchmen, de Alan Moore, que questiona como a humanidade lidaria com seres superpoderosos: “Quem vigia os vilgilantes?”
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A reação do Congresso na quarta-feira (27) em torno do Marco Temporal das Terras Indígenas ajuda em várias explicações. Se agora o Congresso reclama que o STF está “usurpando” a sua prerrogativa de legislar, isso aconteceu porque nos últimos tempos o Congresso omitiu-se de resolver uma série de questões que a Constituição não deixava claras. Diante dessa omissão, recorrer ao Supremo tornou-se um caminho comum. E o Supremo foi avançando. Como se costuma dizer, não existe vácuo em política.
Como não existe vácuo em política, o Congresso também foi avançando em prerrogativas do Executivo. Se hoje o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é o dono da chave do cofre do orçamento, é porque o presidente Jair Bolsonaro entregou a chave a ele.
Curioso como o pretenso arroubo autoritário de Bolsonaro ajudou a tornar o Executivo o mais fraco dos três poderes. Vale sempre lembrar como Bolsonaro atuava, numa tática de avança-e-recua: ensaiava um arroubo; se não houvesse reação, fixava-se ali para avançar a partir do novo ponto; em caso contrário, recuava. Como geralmente Bolsonaro perdeu a parada, foi cedendo espaço para os demais poderes.
Para que Lira mantivesse os mais de cem processos de impeachment bem guardados na sua gaveta, Bolsonaro cedeu a ele o controle das emendas orçamentárias. E, na outra ponta da Praça dos Três Poderes, o STF assumiu o posto principal no sistema de freios e contrapesos para conter Bolsonaro.
Chega-se, então, a situação atual. Com a chave do cofre, Lira organizou o comando do Centrão. Tornou-se chefe de um grupo coeso, fortíssimo, em vários partidos. Cobra do governo Lula cargos e verbas. E Lula não tem saída se não mais e mais entregar os cargos e verbas pedidos. As leis da “física” no caso ensinam que não há vácuo na política. Ensinam também que ninguém retorna do espaço que já conquistou.
E o Judiciário primeiro avançou nos momentos em que o Congresso se omitiu. Resolvendo vácuos legislativos em questões como a união civil de pessoas do mesmo sexo ou os casos em que se permitiria o aborto. Encontrou unidade para evitar que se concretizasse a provocação do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP): não se deixaria fechar pela ação de um cabo e um soldado.
Passados os tempos de arroubos, Lula parece hoje estar à frente do menor dos três poderes. Incapaz de retomar os pontos que o Congresso lhe tomou. E o Judiciário avança sobre as omissões do Legislativo e os arroubos do Executivo. Mas, e quanto ao Judiciário, quem o controla? Quem vigia os vigilantes?