Mais de 63% da população mundial – e de 67% da brasileira – tem dificuldade em diferenciar o bom jornalismo de rumores e mentiras. Os números são do Edelman Trust Barometer de 2018. Em janeiro deste ano, a consultoria Idea BigData publicou outro estudo dizendo que 45% dos entrevistados no Brasil sequer sabem o que quer dizer a expressão “fake news”, e que 83% dos brasileiros temem compartilhar mentiras na Internet.
Às vésperas do início da campanha eleitoral, a preocupação com o tema e seu impacto na disputa política cresce, assim como as iniciativas de checagem de fatos e dados, que tem se multiplicado e surgido no debate público como uma ferramenta importante de combate à desinformação nas redes. Sem dúvida, checar informações e buscar comprovar a veracidade dos fatos é fundamental, sobretudo no jogo político. Mas qual o impacto do uso que tem sido feito das checagens pelas plataformas digitais para a garantia de um debate efetivamente plural nas redes sociais? É isso que discutiremos neste segundo artigo da série Eleições e desinformação: de olho no combate às fake news, uma parceria do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social com o Congresso em Foco.
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Primeiro, vale tratar rapidamente das principais agências de checagem em funcionamento no Brasil e de como elas trabalham. Inspiradas em projetos norte-americanos e no site argentino Chequeado, as primeiras iniciativas de checagem funcionaram no país durante as eleições de 2010 e, depois, em 2014. Várias, entretanto, foram descontinuadas.
Em julho de 2015, nasce a Aos Fatos, que se apresenta em seu site com “a primeira plataforma brasileira a checar sistematicamente o discurso público”, “obcecada em buscar a verdade na política”. No mesmo ano, surge a Lupa, que também se apresenta como “a primeira agência de fact-checking do Brasil” e afirma que “pretende ser um lugar ao que os brasileiros podem recorrer quando precisam tomar decisões – das mais simples às mais importantes”. Ambas integram a International Fact-checking Network (IFCN), uma rede global de checadores que trabalha com princípios, regras (que envolvem auditorias independentes) e um código de ética específico.
Ambas explicam que escolhem um conteúdo que será checado com base em sua relevância pública e que comparam a informação com dados públicos, oficiais e de diferentes fontes. Opiniões e previsões não são checadas. A Lupa informa que o repórter pode recorrer à análise de especialistas para contextualizar o assunto e evitar erros de interpretação de dados. E que sempre solicita posição oficial daquele que foi checado, dando-lhe oportunidade para se explicar. Ao final, classificam a declaração ou notícia em relação ao seu “grau de veracidade”.
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PublicidadeA Aos Fatos trabalha com sete categorias de selos: verdadeiro, impreciso (quando a afirmação necessita de contexto para ser verdadeira), exagerado (quando as declarações não são totalmente falsas, “mas estão quase lá”), contraditório (quando o conteúdo da declaração checada é objetivamente oposto ao de afirmações ou ações anteriores atribuídas à mesma pessoa), insustentável (quando não há fatos, dados ou qualquer informação consistente que sustente a afirmação), distorcido (quando o conteúdo traz informações factualmente corretas, mas aplicadas com o intuito de confundir) e falso.
Já a Lupa usa uma escala de oito etiquetas: verdadeiro, falso, exagerado (a frase que contiver um número 10% superior ao verdadeiro), ainda é cedo para dizer (a informação pode vir a ser verdadeira), insustentável, contraditório, de olho e verdadeiro, mas (a informação está correta, mas o leitor merece um detalhamento). A partir desta quinta, 16/08, a Lupa inaugura uma nova etiqueta, intitulada “subestimado”, que será aplicada a frases em que dados ou informações sejam mais graves do que a afirmação do candidato.
A Pública, que não é uma agência de checagem, mas que há muitos anos desenvolve o projeto Truco, durante as eleições, também criou, no último mês, o selo “subestimado”. Mas aposentou os selos “distorcido” e “contraditório”, além de anunciar novas descrições em suas classificações, visando deixar os critérios mais claros. A metodologia de A Pública se aproxima das anteriores e ela também integra a IFCN. Nesta segunda, 13/08, a agência lançou o projeto Truco nos Estados, que vai cobrir a disputa eleitoral fazendo fack-checking em SP, MG, RS, PR, PE, CE e PA.
A Lupa também inaugurou ontem seu período oficial de cobertura das eleições 2018 e, além dos presidenciáveis, vai checar o que dizem os/as candidatos/as ao governo do Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal.
As plataformas e a parceria com as agências de checagem
Num cenário de consolidação das agências de checagem no país e, ao mesmo tempo, de pressão pública sobre as plataformas digitais para o enfrentamento ao fenômeno das chamadas “notícias falsas”, gigantes como Google e Facebook anunciaram acordos com essas agências.
Já em 2017, o Google criou um selo de verificação de fatos, que aparece nos resultados da busca por notícias caso o assunto pesquisado já tenha sido checado por alguma agência. Ou seja, o usuário faz a busca normalmente e as notícias verificadas trarão a tag “Verificação de fatos” nos resultados. Ao mesmo tempo, o Google modificou os algoritmos de busca para incluir critérios de “qualidade” e impedir progressivamente que conteúdos comprovadamente enganosos sejam disponibilizados.
Em parceria com a Aos Fatos, o Twitter desenvolveu o robô Fátima, que envia mensagens a usuários que postaram conteúdos considerados falsos com um link para as informações tidas como verdadeiras pela agência de checagem. Um exemplo de mensagem enviada pela Fátima este mês foi “Olá! Verifiquei que essa notícia sobre LGBTs e pedófilos é falsa. Dê uma olhada nas informações verdadeiras aqui:”. A @fatimabot sincroniza um banco de notícias falsas já checadas pela equipe de Aos Fatos e mapeia no Twitter, a cada 15 minutos, posts com links para essas informações. Ao encontrá-los, dispara uma resposta para o perfil.
Em maio, o Facebook divulgou parceria com Lupa, Aos Fatos e também com o serviço de checagem da agência France Press para identificar conteúdos falsos e, aí, reduzir o alcance dessas postagens na rede. Ou seja, o Facebook não removerá esses conteúdos, mas na prática eles acabarão chegando pra muita pouca gente. Segundo o Facebook, nos Estados Unidos, esse mecanismo reduziu em até 80% a distribuição orgânica de notícias consideradas falsas.
O mecanismo funciona a partir da sinalização de postagens falsas pelos usuários, que então são enviadas para as agências de checagem e, a partir desta análise, sofrem as consequências impostas pela plataforma. Entre elas, a proibição de serem impulsionadas e a previsão de que os usuários que compartilharem esses conteúdos serão notificados diretamente pela rede social. Páginas que compartilharem notícias consideradas falsas de forma repetida também terão seu alcance reduzido.
Como fica a liberdade de expressão diante desses acordos?
Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) definiu, em seu artigo 19, que provedores de aplicações – como as redes sociais – somente poderão ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial, não removerem este conteúdo. O princípio, chamado de “inimputabilidade dos intermediários”, tem como pano de fundo a ideia de que essas plataformas não seriam gestoras de conteúdo, ou seja, não interfeririam em geral em sua publicação ou fluxo na Internet – salvo exceções previstas em lei.
O que tem acontecido a partir dessa classificação dos conteúdos como “falsos” ou “verdadeiros” vai, entretanto, no sentido contrário. Não à toa, o acordo gerou reações acaloradas no país, sobretudo do Movimento Brasil Livre (MBL), que acusou as agências de partidarismo e moveu uma campanha de ataques pessoais aos profissionais dessas agências. Em audiência pública na Câmara dos Deputados, o Intervozes repudiou os ataques do MBL e reafirmou a importância do trabalho de checagem.
Entretanto, há uma diferença grande entre reconhecer a validade de iniciativas como estas e transformá-las em critérios exclusivos e absolutos para reduzir o alcance de determinados conteúdos nas redes – principalmente em plataformas que se tornaram monopolistas e representam hoje um espaço central do debate público no país.
Esta lógica, adotada por empresas como o Facebook, representa uma ameaça para a liberdade de expressão, por três motivos principais. O primeiro é que nem o maior exército de checadores do país será capaz de verificar todos os conteúdos postados nas redes. As próprias agências, como mencionamos acima, escolhem o que vão checar, num universo infinito de postagens e links. O que acontecerá com o que não for checado? Será interpretado como suspeito? Se as agências trabalham com critérios de relevância, o que não for checado estão pode ser visto como insignificante? Em meio a disputadas eleitorais, todos sabem a diferença que dar visibilidade a uma ou outra declaração de um candidato/a pode fazer diferença. Caberá às agências escolher isso?
O segundo motivo é que as agências de checagem também erram, e elas próprias admitem isso. Afinal, a “realidade” ou “a verdade” está longe de ser o resultado de fatos e dados objetivos. Nós, jornalistas, sabemos que é possível contar uma grande mentira somente usando fatos e dados verificados. E o problema aumenta quando o dano causado por um erro de checagem, que pode ser enorme, atinge não apenas o alcance que será dado a determinada postagem, como também a credibilidade de quem produziu aquele conteúdo.
Foi o que aconteceu com a polêmica – que já se tornou um clássico nos debates sobre “notícias falsas” – em torno do envio de um terço do Papa ao ex-presidente Lula, por meio de um emissário que o teria visitado em Curitiba. Em junho, a notícia começou a circular em páginas e redes identificadas ao Partido dos Trabalhadores. Rapidamente, com base em uma nota do site VaticanNews, Lupa e Aos Fatos classificaram a informação de falsa. O fato só foi esclarecido dois dias depois, mas neste intervalo uma matéria do portal da Revista Fórum, do jornalista Renato Rovai, repercutindo o fato, já havia sido derrubada pelo Facebook. E todos os que a haviam compartilhado, recebido uma notificação da plataforma dizendo que aquela página havia publicado conteúdo falso.O mesmo aconteceu com outros dois sites de esquerda, o DCM e o 247, que trataram do tema. O impacto para a credibilidade de um veículo de mais de 15 anos como a Fórum foi enorme e o portal estuda processar o Facebook. Como a própria Lupa diz em seu site, a pressa é inimiga dos checadores. “Quando a velocidade e a busca pelo furo jornalístico é o que importa, o checador tende a publicar uma informação rasa. Pode etiquetar uma frase como sendo verdadeira ou falsa, sem ter levado em consideração o cenário mais amplo em que ela se encaixa. A perda do contexto é sempre perigoso”, declaram. Fica a dica!
Por fim, e não menos importante, é que a transparência sobre os conteúdos classificados, que tiveram seu alcance reduzido nas timelines ou nos resultados das buscas, é ínfima por parte das plataformas. Quantas postagens estão tendo seu alcance reduzido? Por que motivo? A checagem foi feita por qual agência em cada caso? Qual foi o “selo” que aquele conteúdo recebeu – já que as agências não trabalham apenas com “falso” ou “verdadeiro”, e sim com os vários tons de cinza presentes no mundo da desinformação?
São questões que estão aí para serem debatidas, amplamente. Para que o fenômeno da desinformação possa ser enfrentado nessas eleições, mas para que a liberdade de expressão continue garantida enquanto um princípio da nossa democracia. Na próxima semana, confira mais um artigo o combate às fake news no nosso especial.