Não lembro a data exata, mas foi em algum dia do último trimestre de 1995. Eu tinha voltado pouco antes da Inglaterra, onde fiz um mestrado graças a uma bolsa do Conselho Britânico, e estava encantado com Brasília, com o reencontro com a família, com o trabalho (no Correio Braziliense, que naquele momento vivia uma revolução liderada por Ricardo Noblat), com os amigos, com o Brasil.
Como na música de Caetano, tudo me parecia divino e maravilhoso. E naquela noite tudo me pareceu um pouco mais mágico.
Para um jornalista em atividade há mais de três décadas na capital federal, estive poucas vezes no Piantella. O restaurante foi dos anos 1980 até 2020, quando fechou pela segunda e derradeira vez, o principal endereço do poder em Brasília. Pouso habitual de políticos, lobistas, empresários e de pessoas poderosas de passagem pela cidade.
Fui ao Piantella não mais que dez vezes. Ou porque não estava disposto a – ou tinha o dinheiro para – pagar o preço, que não era baixo. Ou por me sentir mais à vontade em ambientes mais simples e informais. Ou por burrice: sei que vários colegas, às vezes mais duros do que eu, davam um jeito de frequentar o local, sempre saindo de lá com ótimas dicas de pauta e até com “furos” inteiramente apurados ali dentro.
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O fato é que naquela noite eu estava lá, sentado de frente pra porta de entrada, exatamente como gosto de ficar em lugares públicos. Neurótico é fogo, sabe? Vai que entra alguém que não gosta de você, melhor se precaver… Cada doido com sua mania, né? Enfim, estava lá e vi quando ele entrou, acompanhado da segunda esposa.
Mal Pelé e Assíria surgiram na entrada do restaurante, os comensais da mesa em frente se levantaram. Achei graça, mas logo vi que todos, em todas as mesas, também se levantavam. Claro que fiz o mesmo. Em seguida, a poderosa clientela do Piantella fez algo que nunca vi antes nem depois. Bateu palmas para o “rei”, então investido no cargo de ministro do Esporte do governo Fernando Henrique Cardoso. Não sei como nem por que aconteceu assim, daquele jeito e naquela hora. Talvez o Pelé passasse por lá raramente, talvez tenha se deparado com os fãs desacostumados com o jeito blasé com que os frequentadores do Piantella costumavam se portar diante de pessoas famosas.
PublicidadeSorriso de orelha a orelha, Pelé deu mostras em seguida da sua indiscutível majestade. Foi de mesa e mesa cumprimentar um por um, uma por uma. Apertava a mão e, com a naturalidade dos grandes, jamais dizia “muito prazer” ou coisa que o valha. Comportava-se como se reencontrasse um antigo amigo: “Oi, como é que você tá? E aí? Tudo bem?”.
Àquela altura, confesso, eu tinha os sentimentos divididos em relação ao maior jogador de todos os tempos. O menino que adorava jogar bola, tão fissurado por futebol que cedo tornou-se leitor mirim das páginas cor-de-rosa do Jornal dos Sports, jamais deixou de amar o craque.
Vivas estão ainda na minha memória, e olha que eu tinha sete anos de idade, as imagens da TV preto e branco mostrando ao vivo o famoso milésimo gol, num pênalti cobrado contra Andrada, do Vasco da Gama. O Maracanã veio abaixo, e eu também, tocado pelo que se passava na tela e pela alegria ao meu redor. Via meu pai, um médico habituado a controlar suas emoções, com os olhos transbordando felicidade e orgulho. Como se dissesse: respeitem o Brasil, gente! Temos Pelé, o maior atleta que o mundo já conheceu!
Também lembro com clareza, e aí eu já tinha oito anos, de Pelé e da insuperável seleção campeã da Copa de 1970. Naquela mesma sala em que vi pela TV o milésimo gol acontecer, quebrei a vidraça da porta ao balançar a bandeira do Brasil. Fui perdoado rapidamente por papai e por uma mãe até hoje, aos 90, super condescendente com os erros de seus cinco filhos. Havia uma razão forte para perdão tão ligeiro. Eu comemorava o gol de Jairzinho, nascido de um passe do rei, em um sofrido 1 a 0 contra a Inglaterra.
Bem, essa e tantas outras cenas têm a ver com a memória do desportista. Dentro de mim havia ainda restrições à figura pública, de posição contraditória em relação à ditadura militar, pela qual desde menino nutro repulsa. A partir daquele momento, porém, minhas forças internas estavam vencidas pelo carisma, pela expressão franca, pela superioridade do ser humano mais fora de série que esta terra brasilis já produziu.
“Um garoto negro que ousou ser rei em um país racista, que também é um país destruidor de super-heróis”, conforme resumiu Emicida no canal GNT. “Sucesso no Brasil é uma ofensa pessoal. Quando você tem a pele escura, é crime hediondo”. (ver abaixo o vídeo completo)
Um garoto negro que ousou ser rei em um país racista. Descanse em paz, rei Pelé 👑 pic.twitter.com/MJteoSDf0x
— Laboratório Fantasma (@lab_fantasma) December 30, 2022
Evidente que Pelé, o gênio e o mito, encarnou um corpo humano. Portanto, sujeito a erros, como todos nós, o que não pretende ser da minha parte uma atitude de indulgência, mas de tolerância. Imperfeitos somos todos, todas, todes. Daí a beleza de guardar no coração, mais provavelmente do que na memória, a imagem inspiradora de figuras como Edson Arantes do Nascimento. Ou, permitam-me, daquele senhor cujos olhos vi borbulhar de fascínio diante do milésimo gol do supremo artista da bola.