Gabriel Funari *
A disputa presidencial no Brasil dá cada vez mais razão à famosa frase do jurista alemão Carl Schmitt, que declarou em seu livro Teologia Política que “todos conceitos significativos da teoria moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados”. Para Schmitt, o desenvolvimento do Estado laico desde o século 18 foi incapaz de livrar o sistema político de tendências espirituais.
Mesmo sendo um produto da modernidade, o Estado laico, segundo Schmitt, proporciona sua própria religião, em que a onipotência de Deus dá lugar à onipotência do soberano. É impossível falar de política sem reconhecer suas origens teológicas.
Desde o Cabo Daciolo segurando sua Bíblia em pleno debate presidencial a candidatos da direita e da esquerda buscando bênçãos em templos, tendências teológicas vão mostrando a sua força na política brasileira. No meio de debates ideológicos sobre o futuro do país, forças messiânicas vão surgindo.
Quando disputas políticas acabam se afunilando na figura de indivíduos, a figura do salvador da pátria se torna irresistível. Vídeos em redes sociais e propagandas eleitorais mostram candidatos quase beatificados no clamor de seus seguidores. O messianismo surge no meio da insatisfação popular com o sistema político e acaba transformando as eleições em disputas polarizadas entre crentes inabaláveis.
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Eis o mistério da fé. Em um caso perplexo de determinismo nominativo, Jair Messias Bolsonaro exemplifica melhor que qualquer candidato os perigos do messianismo. Seus seguidores mitificam todos os seus atos e defendem suas posições com fervor ilimitável.
PublicidadeBolsonaro oferece uma visão de sociedade segura e restrita, defendendo um retorno ao passado, visto como uma época sagrada pelos seus seguidores. A trindade hipermasculinidade, supremacia racial e armas sustenta a candidatura de Bolsonaro.
Na reta final de campanha, o “mito” tenta atrair eleitores além de sua base restrita de homens brancos de classe média. Sua pose de messias é seu maior recurso. Resta saber se os opositores de Bolsonaro, que o veem em termos quase diabólicos, vão conseguir dissipar seu messianismo nas urnas.
Fator Lula
O outro lado do espectro ideológico também propõe uma visão messiânica em torno da figura do Lula. Atrás das grades em Curitiba, o ex-presidente sustenta sua popularidade inigualável. O PT o projeta como um mártir de uma batalha política que sempre foi tramada em termos desiguais. Para o eterno desgosto e incompreensão de seus opositores, Lula segue sendo a figura central da eleição.
Sua inelegibilidade só aumenta seu protagonismo. Preparado para a inevitabilidade do impedimento da candidatura, o PT usa a figura de Lula na campanha como o salvador impedido de concorrer por forças perversas. Mesmo não sendo candidato, Lula permanece como um messias inalcançável na sua cela, mas ainda capaz de influenciar todos os aspectos da campanha presidencial.
O messianismo crescente nas eleições é consequência de um sistema político em busca de salvação. Diante da ilegitimidade da grande maioria de governantes, o eleitorado vai em busca de alternativas a qualquer custo. Os candidatos que conseguem se projetar como diferentes daqueles que estão no poder resgatam os conceitos teológicos identificados por Schmitt.
Ao mesmo tempo, a falência do sistema político brasileiro gera a polarização da qual o messianismo aflora. O fanatismo dos bolsominions e a adulação de Lula pelos petistas são o reflexo de um ambiente político em fluxo, de um Estado incapaz de diminuir as divergências entre governantes e governados. A busca sedenta pelo salvador vai definir o resultado das eleições, mas a solução para a ilegitimidade do sistema político não será encontrado na figura messiânica.
O apoio incondicional de uma parcela da população credencia as ilusões de poder irrestrito dos presidenciáveis e reforça o ímpeto centralizador do presidencialismo brasileiro. Independentemente de quem vencer em outubro, o novo presidente vai tomar posse de uma maquinaria governamental que oferece inúmeras oportunidades para o abuso de poder.
Em vez de bajular ídolos políticos, acima de tudo temos de contestar as narrativas messiânicas dos candidatos e cobrar deles um sistema de governança mais transparente e eficiente. A revitalização do nosso regime democrático requer a aproximação entre os polos ideológicos e o reconhecimento das injustiças em vigor.
* Mestre em Estudos Latino-americanos pela Universidade de Cambridge (Inglaterra), Gabriel Funari é graduado em Relações Internacionais e Filosofia pela American University, em Washington DC (EUA).
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