Helena Martins *
Um “fenômeno sem precedentes”. Assim a chefe da missão da Organização dos Estados Americanos (OEA) que acompanha as eleições no Brasil, Laura Chinchilla, sintetizou sua análise sobre o uso do WhatsApp para disseminação de notícias falsas relacionadas ao debate político no país. Um dos motivos para essa diferença é que, aqui, em vez de redes mais abertas como o Facebook, a circulação de notícias falsas ocorre, sobretudo, por aquele aplicativo de mensagens – o qual, por ser privado e baseado em mensagens interpessoais, dificulta o acesso e a investigação por parte de estudiosos e autoridades.
Apesar dessas particularidades, o desvirtuamento do WhatsApp ficou comprovado pelo uso escandaloso da contratação de bancos de dados para envio de mensagens por parte de apoiadores do candidato Jair Bolsonaro; pelo estudo da USP, UFMG e Agência Lupa, de que a maior parte das mensagens que circulam ali é falsa e pela recente descoberta do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio) de que existem fortes indícios de ação automatizada em múltiplos grupos de WhatsApp públicos. O Instituto verificou, entre outras práticas, um ritmo frequente de envio de mensagens, a ausência de nomes e fotos dos perfis mais ativos e participação de determinados membros em dezenas de grupos neste processo eleitoral.
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Tamanha importância não será esquecida após as eleições. Ao contrário. Caso eleito, Jair Bolsonaro poderá levar à institucionalização da lógica da desinformação e da censura. Ninguém deve imaginar que os grupos montados por ele e seus apoiadores ao longo dos últimos anos e que conseguiram ser tão efetivos em sua divulgação serão desarticulados.
Pesquisa da Atlas Político divulgada nesta sexta-feira (26) pelo Valor Econômico mostrou, por exemplo, que um terço do eleitorado brasileiro acredita em duas notícias falsas que foram disseminadas pela rede de Bolsonaro: 36% dos entrevistaram afirmaram acreditar na história do “kit gay”, já desmentida pelo TSE, e 35% disseram acreditar que a revista Veja e o jornal Folha de S.Paulo teriam recebido 600 milhões de reais para apoiar a candidatura Haddad, conforme disseminou a deputada federal eleita pelo partido de Bolsonaro, Joice Hasselmann. Um terço do eleitorado são mais de 50 milhões de pessoas – uma influência equivalente ou superior a dos meios tradicionais de comunicação de massa, mas produzida inteiramente sob comando de uma liderança política.
Será essa rede de WhatsApp transformada num mecanismo de divulgação prioritária dos atos de um eventual governo da extrema-direita? Não é difícil desconfiar que sim. As práticas de Bolsonaro mostram o apego à mentira, como comprova o fato de, mesmo após decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que o proibiu de falar no inexistente “kit gay”, o candidato ter feito referência a ele em programas veiculados no Horário Eleitoral Gratuito ainda nos últimos dias.
PublicidadeA centralidade de uma rede não universal
É interessante perceber que, embora dê muita atenção a um instrumento baseado no uso de Internet, no programa de governo de Bolsonaro não constam propostas para garantir a universalização do acesso à rede. Aliás, a única referência explícita à Internet nas 81 páginas de seu programa encontra-se na seguinte frase: “Somos defensores da liberdade de opinião, informação, imprensa, internet, política e religiosa”. Por sua vez, o candidato Fernando Haddad propõe o programa Brasil 100% Online, “que promoverá a universalização da internet banda larga de qualidade”, de acordo com seu programa.
A lógica do acesso precário à rede também é instrumental para a difusão de notícias falsas. Hoje, o celular é a principal forma de acesso à Internet no país, segundo a pesquisa TIC Domicílios 2017, produzida pelo CETIC.br, braço do Comitê Gestor da Internet no Brasil. Quando observamos o fator renda, a pesquisa mostra que 80% das pessoas das classes D e E dependem exclusivamente do celular para navegar. Essa navegação, entretanto, é limitada, afinal sabemos que muitas pessoas não têm condições de pagar por planos de conexão móvel.
Na ausência da disponibilidade de dados móveis, grande parte da população acessa a Internet via os aplicativos disponibilizados pelas operadoras sem desconto na franquia. A prática, chamada de zero rating ou planos de tarifa zero, impede, por exemplo, para muitos brasileiros/as, que em caso dúvida ou desejo de checagem de uma informação se tenha dados suficientes para visitar sites ou páginas jornalísticas fora da rede social.
Pesquisa realizada em 2017 pelo Intervozes, em parceria com a organização chilena Derechos Digitales, destacou que a prática comercial do zero rating fere a neutralidade de rede, pois dá tratamento diferenciado, muitas vezes sem transparência, a determinados pacotes de dados de determinados provedores de conteúdo e de aplicação, como o WhatsApp. No caso da TIM, segundo o estudo, uma vez consumido todo o pacote, os dados do WhatsApp continuam a trafegar na rede. A Claro, atualmente, disponibiliza “WhatsApp à vontade sem descontar da sua internet”, inclusive em pacotes diários e mensais de Internet pré-paga.
Assim, as pessoas que só conseguem acessar o WhatsApp apenas têm as informações que chegam por meio do aplicativo. Na prática, não conseguem nem abrir o link que chegar por meio dele, restando a elas ler o título. A web, assim, vai ficando restrita e muito mais fácil de controlar do que se as pessoas tivessem pleno acesso ao conjunto dela. Na avaliação do Intervozes, a quebra da neutralidade de rede para oferta do zero rating fere o Marco Civil da Internet.
O ataque à Constituição da Internet
Não estranha que Bolsonaro sequer tenha preocupação com isso. Em 2014, quando a lei foi votada no Congresso Nacional, o candidato foi um dos poucos a manifestar voto contrário contra a proposta que, hoje lei, é referência mundial sobre o tema e ficou conhecida como “a Constituição da Internet”. Em seu canal do YouTube, há um vídeo intitulado “Bolsonaro e o Marco Civil da Internet”, que apresenta a fala feita pelo deputado em plenário na ocasião.
O hoje candidato à Presidência da República disse, há quatro anos: “se o PT quer aprovar isso, está mais do que na cara que tem jabuti nessa árvore”. Atribuindo a defesa do Marco Civil ao Partido dos Trabalhadores, Bolsonaro declarou: “eles vão poder, se não gostar de vossa excelência por algum motivo qualquer, ter uma maneira de invadir a tua privacidade e acabar com a tua vida”.
Hoje, é o próprio Bolsonaro que pratica o “vale-tudo” nas redes e, apesar de dizer que defende a liberdade na Internet, é o político que mais acionou o Judiciário a fim de remover conteúdos críticos a ele na rede. Segundo reportagem do The Intercept Brasil, foram, ao todo 23 ações movidas por Bolsonaro em 2018 para tentar tirar de circulação notícias negativas e posts críticos a ele.
O Marco Civil da Internet estabelece, em seu artigo 19, que cabe ao sistema judicial a decisão sobre a remoção de conteúdos na Internet, debelando boa parte da censura privada automática presente na rede. Sem isso, provedores de conteúdo, a partir de simples notificações, poderiam derrubam textos, imagens, vídeos etc de páginas que hospedam.
Ao desresponsabilizar os provedores por conteúdos postados por terceiros, o Marco Civil criou uma segurança jurídica às plataformas digitais, garantiu a livre expressão do usuário e colocou corretamente nas mãos do Poder Judiciário a responsabilidade pela decisão dos pedidos de remoção, em casos como racismo, discurso de ódio, incitação à violência e crimes contra a honra (injúria, calúnia e difamação), todos previstos em nosso ordenamento jurídico.
Mas não é só no meio digital que nosso direito à informação está em risco. Infelizmente, além da disseminação de notícias falsas, Bolsonaro conta com determinados grupos de mídia tradicional para a construção da validade sobre suas práticas. Emissoras de rádio e TV como Jovem Pan, Record, Band e Rede TV têm se posicionado abertamente a favor do candidato.
Já jornalistas e grupos que produziram conteúdos que geraram críticas a ele, caso, sobretudo nas últimas semanas, da Folha de S.Paulo, têm sido alvos de ataques. O candidato já anunciou que, se eleito, acabará com a destinação de verbas publicitárias do governo a veículos progressistas e, recentemente, à própria Folha. Será mais uma vez a mão do Estado atuando para calar meios divergentes ao governo – prática conhecida como censura. Os riscos estão postos. Os brasileiros e brasileiras decidirão o que fazer diante disso neste domingo.
* Jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante da Coordenação do Intervozes.
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