Passado o primeiro turno, sobram acusações de ilegalidades. Resta saber como as instituições reagirão para assegurar que quem cometeu infrações seja punido
O Ministério da Justiça e Segurança Pública informou no domingo 15 que o Centro Integrado de Comando e Controle Nacional registrou 34 casos de veiculação de informações mentirosas com a clara intenção de prejudicar determinadas candidaturas e 49 episódios indicando a tentativa de gerar desinformação sobre o processo eleitoral. Esses casos, informou a pasta, estão sob investigação em todo o país.
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Se há algo que a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do Congresso Nacional sobre fake news poderia ter nos ensinado é: não há lei que resolva nenhum tipo de ilícito ou abuso sem investigação. E mais: investigação dá resultado. Na CPMI, um pedido judicial, decorrente da vontade política de investigar, identificou assessores do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) por trás de perfis que faziam ataques contra adversários do presidente.
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Passado o primeiro turno das eleições municipais, a demanda por investigação é ainda maior e é preciso atenção se as denúncias serão encaminhadas como se espera, para que seja possível coibir práticas e atos ilícitos e avançar na lisura e credibilidade do pleito de 2022.
A operação de ataques aos sistemas do Tribunal Superior Eleitoral dias antes da votação – ataque de negação de serviço aos servidores e vazamento de dados no dia do pleito –, combinada com especulações nas redes sociais, pode ter sido orquestrada, conforme aponta a organização SaferNet, que trabalha junto ao Ministério Público Federal e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Não sabemos se haverá investigações. Mas é fundamental a mobilização da Polícia Federal.
PublicidadeAinda, o ministro presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, afirmou na sexta-feira 13, durante evento na Corte Eleitoral, que o volume de desinformação este ano foi menor porque as mídias sociais conseguiram derrubar diversas contas que apresentavam comportamento inautêntico, o que contribuiu para a pouca circulação de campanhas de desinformação. Mas cabe a pergunta: esses perfis classificados como inautênticos pelas plataformas serão investigados ou caberá apenas às redes sociais a responsabilidade de conter a desinformação? Não sabemos, ainda que o ministro tenha falado em medidas para coibir crimes.
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Outras dúvidas se acumulam. O candidato à Prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos, por exemplo, foi vítima de uma operação coordenada para disseminar desinformação? Esta operação envolveu o uso de robôs ou outros artifícios para manipular a opinião pública? Quem estaria por trás? Esta ação envolveria o candidato adversário que ficou fora do segundo turno? É propaganda ilegal? Por ora, a única certeza é que, sem provas, não se pode condenar ninguém.
O vídeo produzido por um dos principais acusados no inquérito das fake news do Supremo Tribunal Federal, que acusa Boulos de contratar uma empresa laranja, foi convenientemente publicado no momento em que acontecia, ao vivo, um debate eleitoral pela Internet – em um timing perfeito para o opositor e deputado federal Celso Russomanno (Republicanos-SP) questionar o candidato do Psol sem que este estivesse preparado para oferecer as explicações necessárias. Foi coincidência? Ou havia uma ação coordenada envolvendo um candidato e um vídeo cujo conteúdo a Justiça classificou de “sabidamente inverídico”?
Conforme registrado pela pesquisadora associada ao Intervozes, Helena Martins, na coluna “Observatório das Eleições”, até às 20h da quarta-feira 11, pelo menos 70 mil posts no Twitter mencionavam #LaranjalDoBoulos, denunciando a suposta contratação de duas produtoras fantasmas pela candidatura do PSOL à Prefeitura de São Paulo. Algumas das contas ativas no levante da hashtag foram identificadas como sendo robôs. Esses robôs, quem os criou? Quem os alimenta?
O Ministério Público Estadual, provocado pelo Psol em São Paulo, recomendou à Justiça Eleitoral a abertura de investigação na Polícia Federal contra Russomanno por divulgação de calúnia. A boa notícia é que o juiz acatou a recomendação e deu o prazo de 30 dias para que a PF tome as providências e diligências cabíveis. Também será relevante para o futuro da democracia no Brasil acompanhar o andar desta investigação e se ela prosperará.
O próprio candidato Boulos chama a atenção para a necessidade de apuração dos fatos. Em debate na TV Cultura, afirmou: “Estamos pedindo a apreensão do seu celular, desse meliante com quem você se aliou, com pedido de bloqueio e abertura das suas contas bancárias e da dele para saber quem paga. Quem está pagando, Russomanno, por suas fake news em São Paulo? Vem do dinheiro público?”.
Não faltam denúncias para apurar. A jornalista Patrícia Campos Mello, na Folha de S. Paulo, denunciou que ao menos cinco empresas estavam oferecendo disparo em massa para candidatos, conduta vedada pelo TSE. O Ministério Público da primeira e segunda zonas eleitorais, em São Paulo, instaurou um procedimento de investigação para apurar as denúncias sobre disparos em massa por WhatsApp e extração de dados de eleitores do Instagram e Facebook na eleição municipal.
TSE e a indústria da desinformação
Na noite de domingo 15, o Fantástico divulgou reportagem especial que mostra o mercado de venda ilegal de curtidas, comentários e seguidores, e também o de golpes sob medida para campanhas que tentam enganar o eleitor, segundo definição dos próprios autores da denúncia. O dono do site Campanha Eleitoral 2020, citado na reportagem como um dos prestadores destes serviços, enviou uma nota ao Fantástico dizendo que “não há restrições sobre revenda desses serviços no Brasil e em nenhum outro país”. Se houvesse – diz a nota – “não teria mais de 200 sites desse só no Brasil e no mundo já são mais de cinco mil sites que oferecem o mesmo serviço”. Eis mais uma situação a acompanhar e verificar como o TSE e a Justiça vão se posicionar e se haverá investigação.
E, claro, não é possível deixar de considerar necessário que as instituições brasileiras tomem ativamente a iniciativa de verificar como serão implementadas as regras estabelecidas para este processo eleitoral, tal como a venda de disparos em massa. Era de se esperar ao menos que o TSE solicitasse informações sobre empresas que vendem tais serviços. A preocupação é ainda mais relevante quando se tem em conta que para muitas dessas empresas o modelo de serviço é oferecido de forma totalmente online, sendo o responsável pelo “upload” do conteúdo a ser disparado o próprio contratante.
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Tem mais. Em outubro, o Tribunal Superior Eleitoral divulgou um formulário online para receber denúncias de disparos de mensagens em massa, na forma vedada pela Resolução nº 23.610/2019, por meio do WhatsApp. O cidadão informa o número do telefone – com código do país, Estado e Município – de onde originou a mensagem suspeita. No final do formulário, o próprio TSE afirma:
“O recebimento de denúncias é uma parceria entre o TSE e o WhatsApp, cabendo ao Tribunal apenas repassar as suspeitas. O número do telefone celular associado à conta do WhatsApp poderá ser transmitido ao WhatsApp, Inc., de forma agregada, com a finalidade de viabilizar uma investigação interna sobre eventual violação aos termos de uso e políticas do WhatsApp que vedam o envio de mensagens de forma automatizada e em massa. Constatada a violação pelo WhatsApp, a conta será banida, conforme previsto nos termos de uso e políticas do aplicativo”.
O próprio WhatsApp se comprometeu, junto ao TSE, a investigar as denúncias e inativar contas suspeitas, encaminhando as informações pertinentes às autoridades. Segundo a plataforma, trata-se de “iniciativa inédita no mundo”. Bem, trata-se de iniciativa inédita também ser o WhatsApp o responsável por apurar denúncias de infrações à Lei Eleitoral. Pelo texto disposto no site do TSE, tem-se a impressão que as denúncias recebidas não são encaminhadas, por exemplo, ao Ministério Público Eleitoral ou à Polícia Federal para investigação com o fim de apuração de possíveis ilícitos.
Seria extremamente relevante avaliar a localidade de onde partiu a mensagem denunciada, se de uma mesma região e em grande quantidade, para verificar se haveria algum centro de disparos, por exemplo. Será que estes dados estão sendo cruzados? Não sabemos ainda.
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O fato é que cenário aqui traçado aponta para a urgência de avaliação acerca da necessidade de mudanças nas instituições – e provavelmente na Justiça Eleitoral – para garantir que ilegalidades, comprováveis somente após investigação complexa e minuciosa, não fiquem impunes e mais, que sejam coibidas antes de concluído o processo eleitoral.
Chama a atenção que a Justiça de São Paulo determinou, apenas há poucos dias da eleição, que empresas parassem de ofertar serviço de disparo em massa pelo WhatsApp. As decisões liminares foram expedidas a pedido do WhatsApp! E apenas DUAS empresas foram notificadas, de tantas ofertando o serviço, algo verificável em uma busca rápida na Web.
É certo que a Justiça Eleitoral já esteve centrada na administração do processo eleitoral e voltou-se à análise das ações de impugnação de registro de candidatura e de inelegibilidade, especialmente após a implementação do processo eletrônico de voto e da aprovação de diplomas como a chamada Lei de Compra de Votos (Lei 9840/99) e a Lei da Ficha Limpa. Mas diante de tantas mudanças sociotécnicas no processo eleitoral, talvez seja o caso de avaliar de forma detalhada os procedimentos e recursos disponíveis para apurar denúncias e mesmo para ativamente garantir que as normas não sejam burladas – sob o risco de termos eleições baseadas em condições desiguais de concorrência.
E, considerando o volume de denúncias ainda sem respostas, talvez seja o caso de avaliar este processo eleitoral e a capacidade de reação das instituições antes de aprovar uma lei na tentativa de conter o fenômeno da desinformação – como propõe o Congresso Nacional. É possível que não seja o caso de ausência de regras, mas de (in)capacidade de garantir a implementação das existentes e punição dos desvios.
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