Falei neste espaço algumas vezes sobre a necessidade de a esquerda construir pontes e estabelecer canais de diálogo com os evangélicos. Ao mesmo tempo, também mencionei as dificuldades dessa relação, que não são poucas. Continuo firme na posição de que esse contato é fundamental para o futuro político do campo progressista e, a médio e longo prazo, para a manutenção dos princípios que regem nossa Constituição.
O motivo da insistência é simples: em primeiro lugar, advém da constatação de que os evangélicos estão crescendo no país e, caso mantenham a orientação ideológica que majoritariamente manifestaram nos últimos anos, poderão comprometer o poder eleitoral do campo progressista e gerar impactos autoritários em nossa cultura e sociedade.
Em segundo lugar, baseia-se em resultados de anos de pesquisa que mostraram que, apesar da inclinação conservadora do grupo, existe espaço para disputa política no seio do evangelismo popular conservador, que, apesar do voto em Bolsonaro nas últimas eleições, não manifesta uma ideologia consolidada de extrema direita. Quanto a este último ponto, no entanto, acredito que as coisas estejam mudando rapidamente
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Dois eventos recentes tiveram efeito devastador para as possibilidades de relação entre evangélicos e esquerda no curto prazo. São eles: as declarações de Lula sobre Israel (ainda possam sentido para muitos) e a comoção em torno das acusações (ao que se sabe, fakes) de que haveria uma rede de prostituição infantil e tráfico de órgãos e pessoas na ilha de Marajó.
Os efeitos das falas de Lula sobre Israel, acusando o país de genocídio e comparando as ações do Estado de Israel com as de Hitler podem fazer sentido para alguns, e podem até ter tido efeitos positivos ao atrair a atenção para a barbárie promovida em Gaza, tentando impedir a sua aprofundação. No âmbito da política externa, seus efeitos estão sob debate. No âmbito da política interna, no entanto, os impactos dessas declarações foram claramente negativos para o governo. Especificamente entre os evangélicos, elas posicionaram Lula e seu governo como adversários de Israel, um país quase sagrado para muitos dentro dessa comunidade. Pode não fazer sentido teológico ou histórico a associação entre o Estado de Israel atual e o Israel bíblico, bem como o status dos judeus atuais como “povo escolhido” aos olhos do Novo Testamento. Fazendo sentido ou não, é inegável que essa percepção é amplamente aceita entre os evangélicos brasileiros, seguindo uma tendência observada entre os americanos. Nos últimos anos, essa visão ultrapassou o círculo dos pastores com grande presença na mídia e se difundiu amplamente entre os evangélicos.
A comoção em torno das acusações de uma suposta rede de prostituição infantil e tráfico de órgãos e pessoas na ilha de Marajó foi outro tema de grande impacto. Centenas, possivelmente milhares, de influenciadores e artistas famosos se mobilizaram pela causa. Independentemente dos fatos ou da veracidade das acusações, que parecem carecer de provas, o assunto sensibilizou profundamente e particularmente o núcleo evangélico da sociedade brasileira. A narrativa de que a ex-ministra da família, mulher e direitos humanos, Damares Alves, trabalhava ativamente para resolver esses problemas e que a situação piorou sob o governo atual, encontrou eco significativo entre evangélicos, sendo amplamente difundida por influencers, pastores e figuras do mundo gospel
PublicidadePode-se pensar que a reação negativa dos evangélicos brasileiros a esses eventos seja rapidamente esquecida, como muitas polêmicas nas redes sociais. Contudo, existem razões substanciais para acreditar que seus efeitos serão mais duradouros. Em ambos os casos, há uma conexão direta e significativa entre os temas das polêmicas e valores profundamente prezados pelos evangélicos. No primeiro caso, está a veneração dos evangélicos pelo povo de Israel, tornando alegações de que o governo apoia seus inimigos particularmente sensíveis, alinhando-se à narrativa de que o governo seria anticristão. No segundo, destaca-se a valorização da família e das crianças, temas centrais para a comunidade evangélica, e que supostamente estariam sendo ignorados por um governo e campo político inimigo da família.
Para piorar, os eventos aconteceram em um momento de rearticulação do campo bolsonarista, com vistas ao ato de apoio a Jair Bolsonaro no último domingo, dia 25. Justamente nesse período, Bolsonaro estava em evidência e sua relação com as igrejas estava sendo mobilizada.
Caso os fatos confirmem essa tendência, apenas o tempo e os esforços dos progressistas poderão reverter a situação. Vale dizer que, cada vez mais, a iniciativa de aproximação entre progressistas e evangélicos fica menos viável no campo exclusivo das lideranças políticas, e mais dependente de uma aproximação dos progressistas com as bases evangélicas, ou seja, no campo social. Um desafio nada fácil.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
* Os textos de Vinicius do Valle são publicados no Observatório Evangélico e no espaço Diálogos da Fé da Carta Capital
* Vinicius do Valle – doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Graduado em Ciências Sociais pela mesma Universidade (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP). Realiza pesquisa de campo junto a evangélicos há mais de 10 anos. É autor, entre outros trabalhos, de Entre a Religião e o Lulismo, publicado pela editora Recriar (2019). É diretor do Observatório Evangélico e professor universitário, atuando na pós-graduação no Instituto Europeu de Design (IED) e na Faculdade Santa Marcelina, ministrando disciplinas relacionadas à cultura contemporânea e a métodos qualitativos. Realiza pesquisas e consultoria sobre comportamento político e opinião pública. Está no Twitter (@valle_viniciuss)