Anote aí: HackTown. Anote também: inovação. E anote, sobretudo, este nome comprido: Santa Rita do Sapucaí.
Conhece? Não? Pois é, acabo de conhecer. Trata-se de um pequeno município, localizado no Sudoeste de Minas Gerais. De carro, com o trânsito a favor, fica a 3h de São Paulo, a 4h do Rio de Janeiro e a 4h30 de Belo Horizonte.
Em vários aspectos, é uma dentre tantas outras aprazíveis cidades do vasto interior mineiro: aquela combinação irresistível de comida e prosa boas, sotaque típico, vida pacata, portas que se abrem convidativas pra você entrar e a simpatia estampada no sorriso que brota fácil do rosto das pessoas.
Bem, Santa Rita, que é como os locais gostam de chamá-la, seria “apenas” isso, não fosse o fato de ostentar algumas proezas. Nasceram aqui (a) a primeira escola técnica do Brasil, que também foi a primeira escola de ensino médio de Eletrônica da América Latina (e a sétima do mundo); (b) o primeiro curso brasileiro de graduação superior em Telecomunicações; e (c) a primeira faculdade brasileira a incluir o empreendedorismo em seu projeto pedagógico.
Boralá dar nomes aos bois.
No primeiro caso, trata-se da Escola Técnica de Eletrônica Francisco Moreira da Costa, mais conhecida pela sigla ETE FMC. Criada em 1959 e até hoje mantendo a reputação de uma das melhores instituições nacionais da área, ela é produto do espírito visionário de uma ilustre filha da terra: Luzia Rennó Moreira (1907/1963), ou simplesmente Sinhá Moreira. Resumo no parágrafo seguinte uma história que daria tranquilamente um livro volumoso ou um belo longa-metragem.
PublicidadeSobrinha do ex-presidente da República Delfim Moreira, Sinhá conheceu o mundo na companhia do marido diplomata. Foi quando se convenceu de que o futuro do planeta estaria inevitavelmente associado à indústria eletrônica. Voltando à cidade natal, moveu mundos e fundos — incluindo a grana da família, formada por ricos produtores de café — para construir a ETE. Em tempo: FMC é o nome do seu pai.
O segundo “boi”, se você permite tal liberdade de estilo a quem escreve em um ambiente deliciosamente rural, é o Instituto Nacional de Telecomunicações (Inatel), que começou a funcionar em 1965. Núcleo central do sistema de inovação de Santa Rita, o Inatel teve papel decisivo na implantação da TV digital e do 5G no Brasil e hoje está à frente das pesquisas para o desenvolvimento da tecnologia 6G.
Instituição privada, tem 1,5 mil alunos, em cursos de graduação, mestrado e doutorado, e é a terceira instituição de ensino nacional com maior soma de publicações técnico-científicas na área de Engenharia IV, que compreende as subáreas de Elétrica, Eletrônica, Telecomunicações, Microeletrônica, Engenharia da Computação (software e hardware) e Engenharia Biomédica. Instituição privada, contou com recursos públicos para crescer e ganhar notoriedade, mas vive principalmente da prestação de serviços e do desenvolvimento de produtos para empresas. “Arrisco a dizer que não tem nenhuma multinacional de tecnologia em atividade no Brasil que não tenha ex-alunos nossos atuando como executivos”, afirma Rogério Abranches, head de empreendedorismo do Inatel.
Nasceu em 1971 o terceiro elo dessa cadeia acadêmica: o Centro de Ensino Superior em Gestão, Tecnologia e Educação, cuja sigla (FAI) remonta à sua origem, de faculdade de Administração. Aliás, a primeira do Sul de Minas. A instituição é sempre muito bem colocada nas avaliações do Ministério da Educação.
Vale da eletrônica
Desse tripé germinou um polo econômico constituído por empreendimentos abertos em sua quase totalidade por alunos e ex-alunos do Inatel, da FIA e da ETE. São hoje cerca de 170 empresas de base tecnológica, que respondem por aproximadamente 14 mil empregos. “14 mil empregos num município de 40 mil habitantes não é de se desprezar, né?”, comenta o prefeito de Santa Rita do Sapucaí, Wander Wilson Chaves. Que completa: “Santa Rita é a prova viva de que a educação é a única saída para o Brasil”. Veja a declaração dele em vídeo:
Wander, engenheiro elétrico e ex-diretor do Inatel, foi chamado pelo ex-deputado federal Bilac Pinto (União Brasil-MG) para concorrer a vice-prefeito em 2012. Aceitou. Mal começou a campanha, porém, pediu para deixar a chapa após receber o diagnóstico de câncer no intestino. O cabeça de chapa, Jefferson Gonçalves Mendes na certidão de nascimento e Jefinho na memória dos santa-ritenses, insistiu para que ele continuasse. Elegeu-se vice-prefeito naquela data e reelegeu-se em 2016. Em abril de 2018, tornou-se prefeito após a morte do titular, vítima de complicações depois de uma cirurgia.
“Que coisa é a vida, né, rapaz?”, filosofa Wander, 66 anos. “Quase não entro, por causa de um câncer, acabo entrando, me torno vice e depois é o prefeito que morre. Já pensou?”. Acumulando a vice-prefeitura e o cargo de secretário de Ciência e Tecnologia, Wander Chaves valeu-se do legado de um político local lembrado com carinho: Paulo Frederico de Toledo, o Paulinho Dentista. Vereador, vice-prefeito e prefeito, Paulinho Dentista se dedicou à tarefa de atrair recursos e investimentos para a cidade. Notou que faltava um slogan, uma marca para que suas ações surtissem efeito. Com a ajuda da agência de publicidade MPM, chegou ao bordão que procurava: “Santa Rita de Sapucaí, o vale da eletrônica”. Pegou.
Foi de Wander outra ideia fundamental para o “case Santa Rita”: o movimento Cidade Criativa Cidade Feliz, lançado em 2013. Juntando esforços privados e públicos, planejados e executados de forma descentralizada, realizou-se um conjunto amplo de ações para fortalecer a economia criativa explorando a vocação do município para inovar. Uma mistura em que entraram em cena feira de produtos agropecuários, mostra de artesanato, música, teatro, cinema e, claro, tecnologia. “A ideia era criar um ambiente amoroso”, conta ele. “Onde não há amor, só existe conflito, não há comunicação. Nesse festival de criatividade e inovação o poder público faz parte, mas não é dono. Essa é a jogada! Porque você sabe: o poder público, quando mete o dedo demais, mata a planta”.
“Generosidade”, diz ele, é a palavra-chave para o êxito do vale da eletrônica de Sapucaí. “As pessoas se ajudam. As empresas se juntam para desenvolver produtos. Você lança uma iniciativa e vem todo mundo participar, e tudo sem nada no papel. Não tem conselho, não tem órgão gestou, é tudo na informalidade. Uma vez dei uma palestra para empresários e aí um deles veio me questionar: ‘Mas isso é anarquismo’. Aí respondi: ‘Ah, eu acho que é mesmo”, conta rindo.
Hacktown e Museu da Felicidade
Mineiramente, o HackTown nasceu em 2016, na esteira do movimento Cidade Criativa Cidade Feliz, sem grandes pretensões. Os organizadores, três jovens santa-ritenses, esperavam 50 pagantes para as atividades planejadas, organizadas basicamente a partir da colaboração dos moradores: professores, comerciantes, produtores, artistas. O público superou em muito as expectativas. Foram quase 600 inscritos. Ficou claro que daria para voar bem mais alto.
Perto de mil palestrantes e debatedores, cerca de 300 artistas e um público diário estimado em 15 mil pessoas movimentaram, durante quatro dias (desde quinta-feira até este domingo), o HackTown neste ano. O evento é assumidamente inspirado no South by Southwest (SXSW), o famoso festival de tecnologia e inovação realizado desde 1987 em Austin, no Texas.
Junta tecnologia, arte, construção de redes de relacionamento e reflexões sobre o presente e o futuro, com uma diferença importante: ao contrário do que acontece em Austin, aqui a comida é boa. Entre um sanduíche de pernil e um pão de queijo, sem prejuízo de outras opções para vegetarianos e veganos, você se vê diante de uma legião de profissionais — vindos de todo o país — empenhados em aprender e compartilhar. Além de palestras, debates, demonstrações de produtos, gastronomia, feiras e muitas atividades culturais, o percurso inclui ioga, meditação e a oportunidade de relaxar à volta de uma fogueira, reencarnando nosso lado mais tribal.
Uma incursão que pode levar você de uma palestra sobre inteligência artificial, ou sobre melhores formas de se comunicar, a uma noite de música e dança em um pub de características londrinas. Você pode comprar um pastel na lanchonete Mió da Praça, localizada na praça central da cidade, depois ir para uma das dezenas de locais que se integram ao evento: escolas, restaurantes, prédios públicos, as duas incubadoras existentes no município (uma da prefeitura, outra do Inatel), quatro palcos instalados ao ar livre, casas alugadas por grandes empresas. Também há espaço para recreação infantil (sim, crianças são bem-vindas). Para se deslocar, você pode usar um dos aplicativos de mobilidade disponíveis em um município onde a Uber não teve vez. Esse mercado pertence a marcas como Klick Driver, Vamuuai, BibiPop e Camaleon Car. Se tiver tempo, você também pode dar um trato no cabelo na Two Brothers Barbershop.
Ligeiro, Wander aproveitou o Hacktown 2024 para lançar mais uma novidade. Transformou o antigo fórum municipal, onde já funcionavam as Secretarias de Cultura e de Educação, em Museu da Felicidade. O projeto foi desenvolvido e executado por uma empresa de Belo Horizonte, a FeliciStart, tendo como base principalmente os ensinamentos do professor Tal Ben-Shahar, da Universidade de Harvard. Shahar é o principal teórico da ciência da felicidade, que advoga a necessidade de cultivar sentimentos e emoções positivas, mesmo nas circunstâncias mais adversas, como via essencial para ser saudável e feliz.
Longe do paraíso
Tudo lindo, divino, maravilhoso? Não exatamente. O HackTown, apesar dos seus excepcionais méritos, pode melhorar em organização e curadoria. Quanto a Santa Rita, fiquemos com as palavras do seu prefeito, fã confesso de Anísio Teixeira (Wander é pós-graduado em Planejamento Educacional), Michel Foucault, Jacques Derrida e Gilles Deleuze. Filiado ao União Brasil, ele — que foi do PPS (atual Cidadania) e há anos pertence ao União Brasil — afirma: “Às vezes você faz uma escola e a população não enxerga o bem daquilo, só vai ver o benefício depois. A gente não tem um paraíso, a cidade tem problema como qualquer outra. O orçamento municipal é modesto. Tem disputa de poder, tem atrito, mas a gente estabeleceu uma utopia possível. Não é utopia porque utopia é lugar nenhum. É a utopia possível. E o caminho que a gente está trilhando é usar da criatividade como meio de atingir a felicidade coletiva”.
Registro breve antes de dar tchau. Se você é como eu e gosta de saber a origem dos nomes e das coisas, fica a informação: Sapucaí é como se chama o rio que corta a cidade. Vem do tupi: água (y) de sapucaia (árvore da mata atlântica). Santa Rita é, como você já deve ter imaginado, a padroeira da cidade, cuja população é constituída em quase 80% de católicos.
Veja também:
A tecnologia ajudou a piorar o mundo. A boa notícia é que ainda temos saída