Em tempos de segundo turno, em que as campanhas eleitorais estão recheadas de estratégias mirabolantes que produzem a virada histórica ou asseguram e confirmam a votação majoritária do começo do mês, um expediente simples e conhecido há décadas aparece como o mais presente: explorar medos e ódios. A distorção da realidade para obter afirmação e reforço de “decisões” irracionais tem sido o principal mecanismo de obtenção do voto.
Nem é preciso continuar a descrever o cenário para que se perceba o risco iminente à democracia, quando eleitores – que já estão sujeitos a níveis assustadoramente altos de assimetria informacional, seja pela falta de oportunidades de formação ou pela restrição de acesso – passam a reproduzir comportamentos sociais engendrados em laboratórios. Como recomenda o artigo de Thiago Rondon, também o debate político não pode desconsiderar que as redes sociais não são ambientes neutros, imunes a interferências.
Leia também
Além do fenômeno da escolha geral cada vez menos reflexiva, há um desrespeito estrutural pelas poucas razões alheias, como se, mesmo em um ambiente de flagrante manipulação, as pessoas desconhecessem totalmente que estão sendo, de alguma forma, influenciadas. Há uma boa dose de dissonância cognitiva no discurso superficial sobre o quão poderoso é esse ambiente digital.
A atribuição de falta de inteligência ao flanco oposto denota uma impaciência incivilizada, que interrompe o amadurecimento de processos de negociação social. O principal problema prático, no entanto, é que o “viés de confirmação” político inviabiliza melhores soluções simplesmente porque elas são conhecidas – e aceitas – apenas por determinados círculos.
Quando boas ideias passam a sofrer restrições de circulação por supostamente estarem calcadas em ideários com os quais não se concorda, toda a sociedade sai prejudicada. Projetos e programas governamentais promissores, que ainda precisariam de algum tempo para demonstrar resultados, são descontinuados. Coisas que já funcionam bem são desinstitucionalizadas ou corrompidas, reduzindo o rol de alternativas aplicáveis e, consequentemente, a inteligência coletiva de uma nação.
Transformar a política em um jogo de soma zero – em que para que uma parte ganhe, outras tenham necessariamente que perder – é jogar fora sua capacidade de reconciliar consensos esquecidos e de alinhar estratégias, o que é vital para a resolução de problemas graves que há tanto tempo tornam indignas as vidas de milhões de brasileiros, como a falta de saneamento básico e segurança, em tantos bairros das nossas cidades.
Nossas escolhas, não importam quais sejam, não podem impedir a convergência dos nossos desejos e ações voltados para a transformação da sociedade brasileira. Se os ânimos naturalmente se exaltam, e é até razoável que o pleito veicule uma catarse necessária, as eleições não podem se transformar em momentos de revanche e, por extensão, de acirramento de ódios cada vez mais profundos e pouco tratáveis.
Sempre haverá espaço para repactuar os caminhos da nação, de fazer emergir um acordo geral de convivência entre interesses antagônicos que dependam da unidade nacional para existir. Mesmo que o momento das eleições não seja necessariamente o mais apropriado, pois aquilo que não organizamos nos últimos trinta anos certamente não poderá ser construído nos próximos vinte dias, não é possível continuar perdendo tanto tempo, dando saltos cegos de volta a um passado obscuro de divisão interna e suas consequências nefastas. Nenhum país se desenvolveu assim.
Seja qual for o resultado eleitoral, é obrigação de perdedores e vencedores assumirem a conta moral de parte de nossa falta de coesão social. Ela empurra para um futuro distante a sociedade que todos querem e da qual já poderíamos estar bem mais perto de ser. O Brasil, em que alguém vai sair substancialmente derrotado nesse pleito, estará derrotado inteiro. Perderemos todos, mais uma vez.
Do mesmo autor: